As sutilezas de Andrea

As sutilezas da escrita, de todas elas, estão no A sutileza do sangue, de Andréa Ferraz, (Editora Coqueiro – 2016): um livro absolutamente visual que, mesmo após a leitura, faz as imagens permanecerem nos olhos do leitor. Ela concebe fatos, os mostra nos cenários e cria personagens pulverizados como se fossem jatos multicoloridos de sprays aspergidos sobre a superfície das lembranças.

A linguagem é pura, direta, como deve ser a linguagem fluida da natureza áspera. E é alegre, irreverente, quando sugere situações propícias: “o ar do quarto abafado misturava couro curtido com perfume de mulher recém-casada”. A autora tempera o texto com condimentos nativos, untando a prosa de sabor e cheiro, oferecendo as delícias de iguarias que nunca saboreamos. Dessa arte, mostra virtudes além do apego às receitas do mestre Raimundo Carrero (mestre de tantos discípulos), quando esconde habilmente as tramas e atiça a percepção do leitor.

No começo do livro, ela apresenta o emprego de tempos verbais, indo e vindo com a imaginação do leitor de forma subliminar. Em seguida, constrói metáforas com o pó de terra árida, gado magro, soar de chocalhos, ardor da bebida: “os sábados tinham um cheiro de suor e de cachaça”.

O texto nos seduz em continuados momentos, notadamente em construções de elogiável feitura estética: “Maria Zoião chega à porta da cozinha, os cabelos não param quietos, finos em pequenos cachos. Os olhos enormes e sobrancelhas erguem-se e se demoram no mundo, enquanto ela esfrega um pé no outro. Gosta de rir botando os dedos na boca, as duas mãos na cara, cheia de cócegas, se encolhendo, escondendo a falha do canino perdido quando, pela milésima vez, a mãe lhe esfregara nas fuças o lençol urinado”. Aqui, Andrea destaca o gestual e o movimento da personagem na cena.

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Ainda sobre essa personagem, compõe um trecho de puro encantamento quando refere Maria Zoião: “os homens nada lhe davam naquele mundo de pobreza, bastavam-lhe as pulsações”. A beleza se mantém noutras cenas, em uma delas que traduz saudade, leva ao leitor a imagem da chama do candeeiro, que dança a se exibir à brisa em evoluções das sombras provocadas pela tênue luz que pulam em busca do teto, e voltam pela parede em busca do chão:

Chamam a atenção os trechos que resgatam significados, espaço e época, de palavras e frases esquecidas como botija num vocabulário remoto, que remete ao estilo de Gilvan Lemos: vejam a narrativa sobre os pendores do sanfoneiro: “Seu Elias era virado numa “pé de bode”, ou observando o panorama dos bichos: “As cabras levantando dos dormidouros, muitas enchocalhadas, outras de cabrito novo, tudo amusgado na mãe”. E ainda quando transporta o diálogo entre genro e sogro: “Dê um conselho a ela” (referindo à esposa), ao que responde o sogro: “Lilo, você já pelou o porco”. Ou ainda anunciando o anoitecer: “os passarinhos já haviam amenizado a futricagem”. A riqueza metafórica e a beleza das símiles vêm a cada página criada com o necessário esmero. Surgem das águas do Pajeú ao descrever o mato molhado “O verde enchendo a vista”, ou em um dos melhores momentos do livro, com Abel e Amapola numa tenda de ciganos: “numa cena com cheiro de tragédia”, ou ainda ao descrever o perfil físico de um dos personagens: “A pele morena parecia frita com banha de porco”.

Fale de sua aldeia e estará falando do mundo, disse Leon Tolstoi e assim Andrea Ferraz procedeu. A sutileza do sangue traduz com fidelidade o que pediu o pensador.

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