Triste, louca ou má

*Por Beatriz Braga

Quinta-feira passada eu estava em Belo Horizonte visitando meu irmão e fomos ao show da banda Francisco, El Hombre. Quinta-feira passada eu imergi. Afundei na multidão ao lado de desconhecidos e se você for hoje no Distrital – lugar do show – provavelmente uma parte de mim ainda está por lá.

A noite estava ótima, até que ficou melhor quando a cantora da banda, Julia Strassacapa, cresceu no palco com a música Triste, louca ou má. O canto é uma alusão à expressão “sad, mad or bad” dada às mulheres que vivem sozinhas nos Estados Unidos como se, por conta disso, elas fossem uma dessas três coisas.

A banda faz uma reflexão sobre as receitas de comportamento impostas às mulheres e um convite a se libertar desses nós. Júlia homenageou Marielle Franco, a vereadora “louca” assassinada covardemente nesses tempos difíceis do Brasil.

Até agora, não sei explicar o que me fez chorar copiosamente quando o propósito da noite era apenas dançar até o chão. Não sei se foi porque, na minha frente, havia um grupo de quatro amigas que, assim como eu, estava curtindo o show despretensiosamente. Na hora da dita canção, foram levadas a se abraçarem. Percebi que também choravam e pude ouvir as suas declarações. ‘Eu te amo real, amiga, e isso é muito lindo”, disse uma. “Você é a pessoa mais linda que eu conheço”, declarou outra. E assim seguiram com as mãos entrelaçadas e ombros colados, dançando conforme a música.

Não sei se chorei também porque estava lá com três homens importantes para mim. Meu irmão, um grande amigo e meu namorado. O primeiro, por ser gay, enquadrado entre “xs loucxs” de uma sociedade cujo dicionário social é todo errado. Sendo ele, também, um ser que contribui para a transformação do mundo em que vive. Os outros dois são dos poucos homens heteronormativos ao meu redor que estão abertos à importância do diálogo de gênero e sexo. Com eles, converso, aprendo, ensino, cresço.

Não sei se chorei ainda mais porque, ao me dar conta que estava hipnotizada pela apresentação, olhei ao redor. Vi mais mulheres chorando, homens também emocionados, um público todinho prestando atenção no que aquela mulher de voz firme falava. O machismo afeta todo mundo em diversos graus e, quem sabe, Júlia estava impactando as pessoas em também diferentes níveis.

O que será da vida senão uma multidão que dança em frente ao palco? Mulheres, homens, trans, negros, pardos, cis, brancos….vendo a vida ser cantada. Cada um com sua batalha, dançando conforme o ritmo que lhe é permitido. O que será do futuro se a gente não parar para ouvir o canto do outro que sofre mais do que a gente? Se a gente não entender que dar voz às letras que não são ouvidas é o único caminho para um mundo um pouco melhor?

“O homem não te define. Sua casa não te define. Sua carne não te define. Você é seu próprio lar”, canta ela como um mantra. “Ela desatinou, desata os nós, vai viver só”, completa.

Alguns dirão que é pauta batida, que todo mundo já entendeu, que tá bom de mimimi. Pois olho em volta e ainda vejo uma quantidade demasiada de nós. Nós em famílias, casamentos, amizades e nós com nós mesmas, com nossos corpos e nossos desejos. Somos todos, enfim, tantos nós.

A música no caos da noite, não anunciada, é necessária porque nos traz tão para dentro que é possível olharmos para fora com clareza. Aliada à homenagem à Marielle, a mulher negra e lésbica que morreu na tentativa de desatar os nós de uma sociedade maluca. E a revigorante sensação de nos conectarmos àqueles que não sabemos o nome, mas que choram por motivos da mesma natureza que os nossos.

A mulher da música foi viver só porque não quis a receita que a vida lhe impôs. Atenção: estar só não necessariamente quer dizer solidão. Seguir as receitas e padrões, no entanto, é a causa de muita solitude rodeada de gente igual. A companhia das boas decisões, dos caminhos trilhados com liberdade é, por outro lado, uma caminhada mais completa.

Espero que para cada quatro amigas dispostas a se amarem, irmãos, namorados, relações e famílias exista sempre uma mulher que nem Júlia a cantar uma música como Triste, louca e má e um público igual ao de quinta-feira para que seja possível afundar-se e, de preferência, não emergir dali.

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