Na política há os idealistas e os carreiristas

Entrevista a Cláudia santos e Rafael Dantas

 

Advogado fala sobre sua atuação na ditadura e à frente da Comissão da Verdade

Ele foi personagem ativo da política brasileira nos últimos 60 anos. Nesta conversa com a Algomais, o advogado Fernando Coelho conta como foi sua trajetória na luta pelas liberdades democráticas.

 

Como o senhor chegou ao Recife?

Sou paraibano, de Campina Grande, meu pai era funcionário federal. Quando eu tinha 6 anos, ele foi transferido para Minas Gerais. De lá veio para o Recife. Hoje tenho título de cidadão pernambucano, eu praticamente me criei aqui. Estudei no Colégio Nóbrega e na Faculdade de Direito. Tive a satisfação de ser eleito deputado federal por Pernambuco, sendo o mais votado em seis zonas do Recife e na  RMR. E fui ainda candidato a vice-governador.

Por que a política o atraiu?

Sempre acompanhei com interesse a política desde menino. Ainda como secundarista, participava do grêmio do Grupo João Barbalho. Na universidade, fui eleito vice-presidente nacional da UNE, em 1953. Eu mesmo não me considero político.

Como foi a entrada no legislativo?

Quando saí da faculdade, participei da política fazendo advocacia eleitoral. Era delegado do Partido Socialista Brasileiro no cartório eleitoral. Trabalhei na prefeitura de Pelópidas Silveira. Quando ele saiu, Arraes pediu para que eu continuasse na prefeitura, mas em outro cargo. Fui presidente do Ipsep (Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Pernambuco), aos 28 anos. Quando houve o golpe, saí com todos do governo de Arraes.

Como viveu o dia do golpe?

O dia do golpe era dia de pagamento das pensões no Ipsep. Duas mil pessoas, geralmente idosas,  iam receber a pensão no instituto. Muitas vezes, sem ter a passagem de volta.  Passei a véspera do golpe resolvendo problemas de requalificação de algumas pessoas. Às 23h, saí do instituto para Boa Viagem, onde morava. Estava até cochilando no carro quando, ao passar por trás do Teatro Santa Isabel, vi que a ponte estava cheia de motocicletas, obstando a passagem. O motorista deu a volta e seguiu pelo Palácio da Justiça e Rua do Imperador. Aí olhei o Palácio do Governo com as luzes todas acesas. Pedi ao motorista que retornasse. Precisava saber o que estava havendo. Estava acontecendo uma reunião. As notícias do palácio era de uma sublevação em Minas, mas que estava sob controle.  Tínhamos notícias contraditórias. As oficiais eram de que o governo estava sob controle. Fui de carona para casa com Egídio Lima, deputado estadual que morava perto de minha casa. No caminho, uma surpresa: defronte aos armazéns do Cais José Estelita, passou um tanque de guerra. O carro de Egídio era um fusquinha. Se ele não tivesse tirado o carro da frente com a maior rapidez, e entrado num acostamento, o tanque tinha passado por cima. Ao chegar na ponte, tinha um tanque olhando para cá e na outra cabeceira outro virado para o outro lado. O trânsito estava passando, mas eles tinham tomado a ponte. Já no Ipsep, pela manhã, de vez em quando, eu colocava a cabeça pela janela para ver o movimento na Rua do Sol. Muitos soldados passando para o Palácio das Princesas. Chegou um diretor e disse: “deu no rádio, Arraes foi deposto e Paulo Guerra assumiu”. Não era verdade, isso só aconteceu no fim da tarde. Mas eles (os militares) tinham tomado as rádios e a partir nas 9h passaram a dar com frequência um noticiário falso, que desmobilizava o nosso pessoal do interior. Ao cumprir meus compromissos fui para o palácio, mas não pude entrar.

Como foi sua vida depois do golpe?

Eu era advogado, funcionário do Estado e assumi o meu lugar. Não pude sair para o exterior, por causa da família e por não ser rico. Tinha um filho pequeno e a esposa esperava outro. Deixaria a família com quem? Segui advogando. Entrei com 30 ou 40 mandados de segurança para reintegrar ao serviço público pessoas que foram demitidas sem processo administrativo com direito a defesa.

Como o senhor retornou à política?

Houve uma discussão com pessoas amigas, que tinham preocupações semelhantes, sobre o que poderíamos fazer. Achávamos a luta armada errada do ponto de vista estratégico. Seríamos amadores desarmados lutando contra pessoas profissionais armadas. Sabíamos já que o golpe fora dado por brasileiros, mas com auxílio internacional, por conta da Guerra Fria. Todos os países onde os governos eram independentes, mesmo sem serem comunistas, contrariando interesses norte-americanos, foram derrubados, como no caso do Brasil. Uma reação só no Brasil não ganharia e não seria mantida. A classe média estava muito dividida. O operariado menos dividido, mas a repressão foi muito violenta. Aqui em Pernambuco o sistema de repressão vinha do Estado Novo, praticamente não houve descontinuidade. Veio Arraes, mas depois,num tempo curtíssimo, veio o golpe. As estruturas da repressão continuaram. Quando o Exército começou a reprimir, a repressão aqui não teve o que aprender, já sabia tudo. Optamos pela oposição institucional, fui fundador da primeira direção do MDB. Mas fazer oposição era uma insanidade com nenhuma oportunidade de ganhar.

Por que a classe média estava dividida?

Porque havia propaganda massiva afirmando que aqui havia subversão. Saiu matéria n’ O Globo com foto dos bacamarteiros de Caruaru, dizendo que eram uma milícia privada armada de Arraes para derrubar o governo, que dissolveriam o Exército regular e criariam uma milícia civil, como Cuba. Os bacamarteiros eram a prova que as pessoas estavam treinando (risos).

Como foi ser deputado do MDB?

Não queria ser candidato. Na época, eu era candidato a presidente da OAB-PE quando veio a eleição e me indicaram. Eu tinha um certo respeito, era professor de faculdade e eles insistiram para que eu fosse candidato. Mas tinha uma experiência política pelo trabalho do Ipsep. No Governo de Arraes, fui escolhido como secretário do ano. Mudei o quadro da instituição, Arraes me deu todo apoio e isso repercutiu. Recebi muita carta de viúva dizendo que votaria em minha candidatura. Em 1974, fui eleito deputado pela primeira vez. Nessa eleição eles achavam impossível que a gente da oposição fizesse alguma sombra. No guia eleitoral, você tinha um tempo previsto em lei, tinha uma mesa, um microfone para você falar e fazer sua propaganda. Junto ficava um funcionário do tribunal com uma chave para tirar você do ar a qualquer hora. Na dia do guia, eu tinha passado em carreata e passei em casa para mudar a camisa e ir para o guia. Teria 20 minutos para falar. Quando cheguei em casa havia uma senhora, era a mãe de Fernando Santa Cruz. Dona Elzita. Ela veio falar do filho. Contou sobre o sequestro. Fiquei pensando no que dizer nos 20 minutos. Pensei em fazer uma análise da economia de Pernambuco e mostrar os erros. Mas quando dona Elzita me contou do filho eu disse: tenho obrigação moral de dizer isso. O fiscal do guia era um advogado. Disse a ele: sei que você pode me tirar do ar e eu não tenho o que fazer. Mas vou lhe pedir para falar uma coisa que está engasgada e acho que tenho obrigação de dizer. Se você me censurar não poderei fazer nada, mas o máximo possível que você puder me aguentar, me aguente. Ele não me tirou do ar, ficou curioso de saber a história. Fui a primeira pessoa a falar sobre o assassinato de Fernando.

E o resultado dessa eleição?

Ganhamos em 16 Estados. Aqui em Pernambuco elegemos um senador e  5 deputados federais. Minha votação foi em sua maioria no Recife e região metropolitana. Em 1978, fui reeleito. Em 1982, não fui candidato. A contragosto formei chapa para ser vice-governador. O Dr. Ulysses me dizia: “professor, você não pode sair, você será o líder da bancada na Câmara Federal, o senhor está eleito”. Mas tinha responsabilidade grande como presidente do partido e era um dos poucos com condições de unir o MDB, que era uma federação de 5 ou 6 partidos, fora os de esquerda. Perdemos a eleição e perdi meu projeto era para ir para a Constituinte. Foi uma frustração.

Como foi defender a anistia?

Quando cheguei em Brasília ainda era crime falar em anistia. Quem falasse era cassado e considerado comunista. Meu lema de campanha foi: Anistia, Constituinte e direitos humanos já. Falei de anistia quando os Estados Unidos, na ONU, apresentaram uma moção conclamando todos os países que tinham presos políticos a soltá-los. No Brasil, eles não poderiam dizer que os EUA eram comunistas. Os americanos falaram isso para pegar a União Soviética.

Por que torturadores foram anistiados?

O governo não admitia que torturava. Dizia que Dom Helder quando denunciava a tortura estava caluniando o Brasil. A votação do projeto de anistia no Congresso foi num clima de confronto. Quando eles diziam sim, a gente dizia não. Quando diziam não, a gente dizia sim. Esse negócio de extensão da anistia (aos torturadores) que o STF acolheu partindo da ideia de que houve um entendimento surgiu 2 ou 3 anos após a votação da Lei de Anistia. Na votação do Supremo você encontra quatro ou cinco ministros justificando o voto a favor dos torturadores da seguinte maneira: aprovo o texto da lei pois houve um acordo no Congresso  (que permitiria a volta dos exilados políticos em troca do perdão aos torturadores) que tem que ser respeitado. Não houve acordo nenhum. Eles ganharam por 4 votos, num plenário de mais de 300. Que acordo é esse?

Quais os resultados da Comissão da Verdade  em Pernambuco?

Apesar da enorme dificuldade, estamos investigando fatos de 30 a 40 anos, a maioria dos personagens mortos de um lado e do outro. Por um longo período, os arquivos oficiais ficaram à disposição para eles tirarem e acrescentarem o que queriam. Isso com denúncia e coisa provada. Não só na ditadura, mas no governo Sarney não houve interesse de apurar nada, o que só aconteceu depois de Itamar. Apesar dessas dificuldades, resolvemos muitos casos. Conseguimos mudar a versão oficial no caso de pessoas dadas como mortes suicidas, como ocorreu com Herzog. Tivemos vários casos aqui que provamos que não foram suicídios, mas assassinatos dentro de repartição policial. E conseguimos retificação do registro de óbito. No caso de padre Henrique, na época quem estava aqui sabia o que aconteceu de fato, mas a versão oficial era outra. Encontramos documento do chefe do SNI, general do Exército para o ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, contando a versão verdadeira. Dando nomes das pessoas. Eles tinham poder para investigar tudo. O ministro, ao invés de mandar formalizar as informações que recebeu, mandou o chefe do gabinete com recomendação para a comissão estadual para mudar a versão. No caso de Dom Helder, registramos a interferência do governo para impedir que fosse concedido a ele o Prêmio Nobel de Paz. Conseguimos documentação do Ministério das Relações Exteriores provando interferência. Chegaram ao ponto de fazer reunião com os principais empresários de países da Escandinávia, firmas grandes, para que interferissem em Estocolmo na negativa do título a Dom Helder. Inclusive ameaçando suspensão da remessa de lucro ao exterior. E a gente sabe que ditadura poderia tudo.

Como você encara hoje a politica?

Como sempre há os idealistas, sérios e preocupados, como há os carreiristas. Pode ter mudado um pouco as quantidades, mas não muito. Na época já havia na política pessoas em função de interesses, como dar base e estrutura política ao regime militar.

 

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