“Quero chegar na África. É o meu sonho!”

Aos 75 anos, Lia de Itamaracá viveu em 2019 um dos melhores momentos da carreira. Presente no premiado longa-metragem Barucau, no papel da matriarca Carmelita, a mais famosa moradora da ilha do Litoral Norte de Pernambuco recebeu o título de doutora honoris causa pela UFPE, foi homenageada pela Fenearte, pelo Galo da Madrugada e pela Câmara Municipal de São Lourenço da Mata. Foram lançadas duas publicações sobre sua trajetória. Uma biografia e um livro de fotografias, escritos pelo premiado jornalista Marcelo Henrique Andrade, que foi uma das crianças que estudou na escola em que a cirandeira trabalhou como merendeira. Cláudia Santos, Rafael Dantas e Rivaldo Neto entrevistaram Lia poucas semanas antes da última novidade do ano: o lançamento do seu quarto disco, Ciranda Sem Fim, produzido pelo DJ Dolores. A conversa era sempre interrompida por moradores e turistas que cumprimentavam a artista. Até quando o fotógrado Tom Cabral a levou para a praia para fazer as fotos desta entrevista, não faltaram crianças para abraçar ou tirar uma self com a rainha da ciranda. Ela falou sobre sua intensa atividade com o novo CD, entre shows e viagens pelo Brasil, sobre as dificuldades de sobreviver da cultura popular e confessou um sonho que ainda acalenta: levar sua ciranda para a África.

Poderíamos dizer que 2019 foi o ano em que sua obra foi mais valorizada?
Este ano foi bom demais. Receber o título de doutora foi o reconhecimento do meu trabalho. É a cultura e a ciranda sendo bem reconhecidas. Foram muitas homenagens e títulos neste ano. Teve ainda os livros e agora o novo CD.

Como é a sua rotina hoje depois desse mais novo álbum da sua carreira?
Sou Patrimônio Vivo da Cultura de Pernambuco, tenho minha aposentadoria como merendeira em uma escola, minha rotina hoje é apresentar o meu cdzinho e circular com meus dois livros, né? E se chegar mais coisa, eu quero.

Fala um pouquinho desse seu CD novo com Dj Dolores.
Ser dirigida por DJ Dolores foi muito bacana. O disco vem com ciranda e com bolero. Ele chegou por meio de Beto (Hass, assessor de Lia de Itamaracá), que me passou o que ele queria fazer. Eu estava querendo gravar um novo CD há um tempo. Aí juntamos.

Ciranda de Ritmos, seu terceiro álbum, foi de 2010. Por que demorou tanto para lançar um novo disco?
Eu tava borocoxô. Fiquei de mãos atadas, num mato sem cachorro. Sem experiência de nada e os gestores que estavam me arrodeando, me passando a perna. O que era que Lia ia fazer? Nada, é o que o peixe faz? É cruel. A cultura é é difícil.

Como está a agenda de shows?
Depois que fizer o lançamento, vou para São Paulo, Rio de Janeiro e Europa. Já tem Portugal no ano que vem. Serão duas temporadas para a Europa. Aqui ainda terá o Carnaval e, antes disso, fechamos com o Réveillon em Boa Viagem.

Que lugares da Europa estão previstos?
Queremos começar por Montreux, na Suíça. De lá tem uns 10 festivais, na Alemanha, França, Itália. Será a primeira vez que irei para Portugal. Como falamos português, acho que o efeito vai ser maior. Vão entender a poesia da ciranda.

Como tem sido a receptividade no Rio e em São Paulo?
Eu chegando no Rio e em São Paulo, eu tô na minha praia. Todo o mundo me conhece, todo o mundo brinca, se diverte. É muito bom.

Além dos eventos com dança e música, o lançamento dos dois livros está levando a senhora para participar de eventos literários também. Como tem sido essa nova experiência?
Olhe, é bom, é bacana! Quem tá na chuva é pra se molhar. Se é o que eu quero fazer, vou fazer. Se eu queria ser artista, já sou, vou enfrentar qualquer barra.

Na sua biografia, a senhora disse que se sentiu muito mais valorizada fora do Brasil do que aqui. Como é que foi sua experiência no exterior? E por que a senhora disse que se sentia mais valorizada lá fora?
O meu trabalho é aqui. É onde deveria ser mais valorizada. Mas eu não sou. O Recife é o foco da cultura, mas cadê os mestres? Tão tudo parado. Não é porque eu queira ser a rainha da cocada preta, mas quem está ativa da ciranda sou eu. Lutando, lutando, os outros todos desistindo e eu enfrentando pra chegar lá. Nunca desisti. Uns já morrendo sem ter apoio. É difícil. Querer que eu faça as coisas de graça pra eles, eu não faço mais não, além do que eu já fiz. Já dei muita força a Itamaracá, muita ajuda. E se alguém tem que fazer alguma coisa por mim, faça comigo viva. Não deixe eu morrer, senão eu faço que nem Carmelita, ressuscito e vou puxar as canelas (risos).

Que tipo de dificuldades você enfrenta?
Recursos, capital de giro. Para tudo isso tem que ter capital de giro, tem que ter dinheiro pra fazer as coisas. Quem tem o poder na mão não ajuda, não chega perto. É pra gente se virar só? Como é que pode? Eu tenho um espaço de cultura ao ar livre aguardando recursos para ser concluído. Nosso sonho, além de fazer ciranda, é dar aula de percussão, cabelo afro, fotografia.

O filme Bacurau tem rodado o mundo, com prêmios e exibições em grandes festivais. Como foi para você participar desse trabalho?
Ah, Carmelita… Foi bom, né? É Lia se amostrando. Veio o convite pra mim, eu aceitei: tá bom, vamos trabalhar. Todo meu sonho era tá numa tela de cinema. Lia não só canta ciranda, Lia tá em tela de cinema, não é bom? Na direção de Kleber teve também o Recife Frio, no Forte Orange. Agora o Bacurau. Fiz outros filmes, como Sangue Azul, em Fernando de Noronha, e Paraíba Mulher Macho, aqui na Vila Velha em Itamaracá. Tô me virando também no cinema.

Como foi esse contato com Kleber Mendonça Filho, que hoje é o cineasta de maior destaque do cinema pernambucano?
Ele me procurou pra trabalhar. Vale a pena! Vamos lutar com todas as espadas que a gente tem. Eu tenho que dar de tudo um pouco de mim. Até chegar a velhice e eu não poder gritar “Essa ciranda quem me deu foi Lia”. Mas eu quero tá com 100 anos gritando.

Lia, antes de se estabelecer como artista popular, como foi sua vida?
Olhe, eu fui criada numa casa aqui perto. Eu vim de uma família com 18 filhos. Meu pai era agricultor, minha mãe empregada doméstica. Quando cresci lá na casa deles fui fazer ciranda no Bar Sargaça. Cozinhava e fazia ciranda toda semana, todo sábado. Depois veio a escola. Saí do bar para trabalhar como merendeira, fazendo a comida para as crianças. Fazer merenda para 270 crianças não é mole, cada tacho maior do que eu, fogo me queimando… Mas eu amava cozinhar para as crianças, nego. Trabalho não é desonra, não. Às vezes, ia em casa buscar uns temperos, coentro. O que faltava eu ia buscar em casa para acudir as crianças, né? Porque eu não podia deixar os bichinhos sem merenda por causa de um temperozinho, podendo trazer de casa que tinha de sobra.

Seu contato com a ciranda veio desde pequena?
Eu comecei a me interessar por música quando tinha 12 anos de idade. Com 19 ou 20 anos assumi responsabilidades até chegar a gravar meu LP, em 1977. Depois tive a oportunidade de conhecer o meu produtor Beto, que foi quem me tirou da lama, porque senão ainda tava aqui a ver navios. Ele que dá força para a gente tocar o barco pra frente. Faz mais de 20 anos que trabalhamos juntos, eu como cantora e ele como meu produtor.

Qual a sua relação aqui com a Ilha de Itamaracá?
É bacana, nego. Os moradores, a minha comunidade me apoia. Gostam do meu trabalho, isso é importante. Para o mundo todo, eu vou levo Itamaracá nas costas, é um peso danado. Aqui é onde gosto de viver. Amar o próximo pra ser amada. Onde sou feliz.

Lia, você é um ícone de Itamaracá, outro ícone que cantava muito sobre a ilha era Reginaldo Rossi. Como era a sua relação com ele?
Amiguíssima. Toda vez que ele vinha, eu fazia participação no show dele. Ele tinha casa no Forte Orange e sempre mandava me chamar para gente jogar conversa fora, aí eu ia. Mas tudo o que ele queria é que eu saísse daqui. Pedia muito pra que eu saísse daqui. Dizia: “Minha rainha, saía daí, porque aí não é lugar pra senhora, não. Ninguém me valorizou, não vão valorizar a senhora” .

Mas você teve vontade de sair daqui?
Não, não. Aqui é a minha praia, onde eu me inspiro, aqui é a minha casa. Eu saio para ganhar dinheiro e volto pra casa.

E como você vê o futuro da ciranda?
Enquanto eu estiver na mídia e estiver sustentando essa ciranda, ela não cai. Mas e quando Lia cair?

Pois é isso que nós perguntamos: Tem sucessores? Tem gente levando esse legado pra frente?
Tem os cirandeiros que podem fazer a ciranda. Podem aprender as músicas também. A juventude curte. No Recife tá cheio de jovens cantores de ciranda, produtores.

Nessa sua carreira longeva tem algum sonho que ainda não foi conquistado? Ou algum projeto que a senhora gostaria de fazer?
Quero chegar na África. Ficar bem pertinho dos meus neguinhos, é o meu sonho.

E como você se vê chegando na África, fazendo show lá?
Olha, eu tenho certeza que chegando lá, eu não vou fazer feio. Vou pegar aqueles neguinhos todinhos, botar no meu braço e cantar ciranda pra eles. Tenho certeza que eles vão gostar.

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