“A vendedora de tapioca é um fast food”

Autor de mais de 70 livros publicados, e com mais três no prelo, o antropólogo e museólogo Raul Lody especializou-se em arte popular e manifestações de matriz africana. Mas foi a antropologia da alimentação que ganhou força na sua carreira e o tornou uma verdadeira autoridade no tema. Por isso, a equipe da Algomais – Cláudia Santos, Rafael Dantas, Rivaldo Neto e Tom Cabral – decidiu entrevistá-lo no Mercado da Encruzilhada. Ele adorou a configuração, após a recente reforma. Entre boxes de frutas e temperos, fregueses e ambulantes, Lody, que é carioca, falou da sua paixão pelo Recife, da influência de Gilberto Freyre, criticou os ataques aos terreiros de candomblé e fez comentários a respeito das dietas para emagrecer.

Você é carioca e optou por morar no Recife, por quê?
Quando era criança e adolescente, meus pais viajavam comigo pelo Brasil nas férias. Na primeira Missa do Vaqueiro eu estava, coincidentemente, em julho de 1969, em Serrita. Foi a primeira vez que estive em Pernambuco, ia fazer 18 anos. No Recife, fiquei no Grande Hotel localizado na beira do Capibaribe que era navegável. Um espetáculo! Meu olhar sempre foi o de descobrir a cultura imaterial e aqui encontrei muita coisa e sempre voltava para cá quando podia. Até que nos últimos 10 anos consegui comprar um apartamento no Recife, mas continuo com a minha casa no Rio, onde está minha biblioteca principal. Vivo muito Pernambuco, mas também o Nordeste, onde tenho projetos na Bahia, no Maranhão e no Ceará. Então, estar aqui também traz facilidades para os custos de deslocamento para viajar.

Você se formou no Rio?
Sim, fiz ciências sociais, depois completei com museologia. Logo que me formei, fui para Dacar, onde passei um tempo estudando arte africana. Viajei muito não só pela África Ocidental, mas também pelo Magrebe, área que me interessa muito (Marrocos, Argélia, Tunísia, Egito). Comecei a trabalhar e ver como a presença dessa região na formação brasileira é fortíssima. O homem português é um afrodescendente, porque foram quase mil anos da presença do Magrebe na Península Ibérica, onde houve uma verdadeira colonização pela civilização afroislâmica. Ela está muito presente em Pernambuco. O pastel de festa, por exemplo, no qual se polvilha açúcar, tem origem num doce folhado português, que lembra a pastilha, uma comida de festa do Magrebe.

Como você vê os ataques de grupos religiosos às religiões de matriz africana?
Em Pernambuco, em 1985, ocorreu o primeiro tombamento no Brasil de um terreiro por um governo estadual, que foi o de Pai Adão. Eu solicitei o tombamento e instrui o processo pela Fundarpe. Isso ajudou muito a proteger a área do sítio. Os terreiros são verdadeiras universidades vivas: têm música, idioma, culto, dança, artesanato, comida comunitária, arquitetura, mitologia. Possui todo um sistema de relações sociais diferenciado. Não é apenas um lugar de culto, é um lugar de experimentação de cultura e de história cultural. Eles sempre foram perseguidos e agora a perseguição acontece quase de uma forma autorizada por grupos com crescente poder econômico, político e de comunicação. Eu diria que vivemos uma encruzilhada (já que estamos neste mercado com este nome). Lógico, que isso não está acontecendo passivamente, mas se trata de um risco patrimonial, histórico, econômico, social.

Por que a alimentação é importante para o estudo antropológico?
A transformação do meio ambiente pelo homem se dá por intermédio da cultura. O que é cultura? São ações, formas diversas, tecnológicas, de transformar o meio ambiente e dar significado a essas transformações. A comida, cremos nós antropólogos e arqueólogos, talvez seja o início desse processo cultural. Comer é uma necessidade e ao comer você dá significado a essa comida. Hoje acho que o melhor tempero de um profissional de comida é conhecimento. Hoje um chef de cozinha, uma boleira, um cozinheiro, que não der importância ao seu saber será engolido pela competição.

Como você analisa o movimento dos chefs brasileiros em valorizar a comida do Brasil?
Isso é muito importante porque se busca o que se chama de ingrediente terroir, aqueles que são próprios, nativos, característicos, feitos ou realizados em contextos ecológicos, num determinado tipo de terra, de clima. Além do terroir, existe a biodiversidade que também faz a diferença nesse mercado tão competitivo. Para você ter uma ideia, já foram codificados mais de 400 tipos de milho, que é um alimento sul-americano, e a batata, que também é latino-americana, tem uma classificação genética com mais de três mil tipos.

Quais os componentes culturais que você identifica na gastronomia pernambucana?
O Brasil nasce de um processo multicultural. A primeira grande globalização vai se dar no final do século 15 com as grandes navegações, quando o português chega ao Japão, à China, à Índia, Indonésia, ao Ceilão, a todo o continente africano. Imagine nos séculos 15 e 16 ter isso tudo reunido, ampliando o conhecimento que se tinha sobre ingredientes! Lógico que a motivação das grandes navegações era comercial e econômica, mas no meio disso vai junto toda a questão social, religiosa, cultural, civilizatória desses povos. Então eu posso dizer que essa multiculturalidade é uma herança e uma coisa muito boa que está presente na mesa brasileira e muito na mesa pernambucana, onde o açúcar criou toda uma civilização, que foi capaz de reunir as chamadas frutas exóticas, como a jaca, originária da Indonésia, a manga, da Índia, a carambola, das ilhas Molucas, que se juntaram com as frutas tropicais da Mata Atlântica, do Cerrado e da Amazônia. Então aqui se tem um acervo imenso interpretado por essas culturas globais da época, que resultou numa culinária espetacular, única.

Como a correria do dia a dia e a cultura do fast food podem prejudicar essa herança cultural?
O fast food sempre existiu. A baiana de acarajé é um fast food, a vendedora de tapioca também, o vendedor de doce japonês idem. O que acontece é que existe uma cozinha massificada, padronizada. Uma vez estava na cidade do Marrocos (passa o vendedor de doce japonês com seu tradicional apito). Olha o vendedor de doce japonês! Fantástico! Isso é lindo, é memória! Bem, uma vez estava no Marrocos e havia um McDonald’s num lugar bem distante. Esse é poder do que a gente chama de fast food. A palavra também significa comer rápido, mas nem sempre isso é ruim. Posso pegar um pedaço de manga e sair comendo. Tem que relativizar essas coisas. E o food truck? Os nomes em inglês, para nós brasileiros, têm um certo glamour. Mas isso é relativo, é comida de caminhão. Olha, eu me lembro que na pracinha de Boa Viagem havia um famoso cachorro quente nas kombis, era um food truck! Era um sanduíche fantástico com carne moída, eu vinha das noitadas para comer um. Acho que o fast food tem o seu lugar também, não só o tradicional, como o contemporâneo emergente para atender a essas necessidades sociais e econômicas. Foi realmente emocionante a passagem do vendedor de doce japonês. Em termos de significados, ele é um patrimônio tão importante quanto a Capela Dourada dos franciscanos, porque para o patrimônio cultural você não cria hierarquias. Ele vale pelo seu conjunto de representação. É assim que a própria Unesco entende patrimônio imaterial.

Hoje há uma certa obsessão por um padrão físico ideal e para alcançá-lo adota-se uma dieta exógena à cultura brasileira. Como você analisa isso?
Vamos falar primeiro o que é dieta, é uma palavra que vem do grego, díaita, que quer dizer comportamento, modo de vida. Então, ela não significa simplesmente substituir lipídios e glicídios, é um modo de vida e envolve componentes comportamentais, não só alimentares. Esse é o entendimento da dieta, inclusive para os nutricionistas, que estão cada vez mais trabalhando com as ferramentas da cultura, não apenas com as da fisioquímica. O tema da comida hoje é multiprofissional, vários profissionais trabalham com alimentação até os antropólogos, e nesse contexto, a dieta implica em questões não apenas saudáveis, mas responde também a um mercado. Há pouco tempo o chocolate era o demônio e agora foi absolvido. O mesmo aconteceu com o ovo e o café. Eu acredito nas pesquisas de saúde, mas também numa coisa chamada mercado. O fator econômico é, às vezes, mais importante que a saúde. Mas cada vez mais as pessoas vão percebendo que podem comer de tudo; é apenas questão de quantidade, de comportamento e também de felicidade. Tenho 103 quilos bem colocados, não é? (risos). Eu caminho todos os dias. Eu gosto de beber, mas não bebo de me embriagar. Gosto de comer doces, chocolates, mas não como todos os dias.

Qual a influência de Gilberto Freyre no seu trabalho?
Muita. Ele foi uma pessoa muito avançada para a época. O filé da obra de Gilberto foi nos anos 30, com obras como Casa Grande & Senzala, Sobrados e Mucambos e Nordeste, que é um livro fantástico, em que foi publicado pela primeira vez, em língua portuguesa, a palavra ecologia. Ele elegeu a comida como um método, uma forma de pesquisa cultural. É inspirador. Já escrevi muita coisa sobre Gilberto e escreverei mais porque acho que ele é um grande desafio permanente e muito contemporâneo. Muita gente hoje trabalha com comida, mas ele tem um estilo muito particular com o qual me identifico muito também. Eu tenho o meu, mas é muito prazeroso ler um texto dele. Gilberto disse para mim que se sentia mais um escritor do que um antropólogo, que dava muito valor ao texto. Eu dou valor ao texto, que acho importante que você produza para comunicar, para revelar, para questionar.

Em entrevista, você disse que algumas festas populares estão desaparecendo. Por quê?
Festa é motivo para comer, festa sem comida não existe. A comida acompanha todos os ritos de passagem: o nascimento (que tem o batizado, os aniversários), as cerimônias de união, as bodas e o velório, que é uma espécie de festa também. Existem ainda as festas de santos e as das mudanças de estações. Mas muitas festas estão desaparecendo. Estamos em momentos de encruzilhada, por exemplo, estava no Maranhão pesquisando a festa do Divino Espírito Santo. No hotel, pedi informação para o rapaz que trabalhava lá, olhei para ele e disse: você tem cara de quem gosta de bumba meu boi. Aí ele me disse todo escabreado: “gostava”. Perguntei porque não gostava mais e ele me respondeu: “minha religião não permite que eu brinque o boi”. Perguntei se ele ficava triste e ele respondeu que ficava de longe vendo a brincadeira. Esse exemplo mostra esse processo, acho que a transformação de tradições religiosas do segmento neopentecostal não é religiosa, é uma transformação cultural. Muitas vezes o mestre da brincadeira morre e o grupo acaba por falta de seguidores. E aí se perde a festa, a música, a dança, o artesanato e a pessoa que costurava as roupas dos que brincavam perde uma fonte de renda.

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