São José e Santo Antônio: região dos contrastes

Santo Antônio e São José são bairros centrais do Recife marcados por diversos contrastes. De um passado protagonista, para um presente coadjuvante na dinâmica da cidade. Do patrimônio arquitetônico de valor mundial, às paredes descascadas e pichadas dos edifícios abandonados. De ruas comerciais com intensa movimentação durante o dia a pátios vazios e marginalizados à noite. Para compreender essa realidade, iniciamos a partir desta edição uma série de reportagens sobre os desafios para reabilitação dessa região histórica da capital pernambucana.

O Forte das Cinco Pontas, o Mercado de São José e a Estação Central são algumas edificações que marcam a identidade recifense e pernambucana. Além delas, um conjunto de prédios eclesiásticos que incluem a Basílica da Penha, a Capela Dourada, a Matriz de Santo Antônio e a de São José, entre tantos outros, são relíquias da arte sacra e da arquitetura religiosa que resistem a uma degradação intensa que afeta a região. Lugares com grande potencial para o turismo, mas pouco acionados pelo trade turístico por causa do entorno nada convidativo para os visitantes.

Consumidores do comércio enfrentam ruas e calçadas esburacadas, bloqueadas com ambulantes e fios da rede elétrica expostos. Não é à toa que o local ficou conhecido como Vuco-Vuco. Foto: Tom Cabral

Os lojistas se queixam do comércio informal e da falta de segurança. Para os trabalhadores e consumidores do local, as calçadas irregulares e a dificuldade de mobilidade − pelas ocupação desordenada do espaço, e pelo transporte público pouco eficiente − são alguns dos problemas mais graves. Esses são alguns dos principais sintomas dessa região adoecida, que tem como contraponto a todas essas barreiras uma inacreditável dinâmica. O comércio popular forte, com uma diversidade de produtos e serviços que não se encontra em outros lugares da cidade, gera uma circulação de pessoas que se assemelha aos corredores de muitos shoppings.

“O principal problema hoje é a falta de ordenamento do comércio informal. O Recife tem muito essa característica do comércio ambulante, não queremos que acabe, mas precisa ser controlado. Isso é fundamental para melhorar o fluxo de pessoas nos bairros. Também pedimos melhorias na segurança, com um policiamento mais ostensivo”, aponta Cid Lôbo, presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL-Recife).

Numa caminhada breve pela Rua das Calçadas ou pela Avenida Dantas Barreto é fácil entender o incômodo apontado por Lôbo. Produtos dispostos no passeio somam-se às calçadas desniveladas e feitas com todos os tipos de materiais (com cerâmica, pedras portuguesas, lajota). De brinquedos e eletrônicos made in China, às panelas e frutas de todas as cores compõe-se o painel de produtos dispostos no chão ou pendurados nas paredes. O emaranhado de fios nos postes e as placas e banners expostos nas ruas compõem a poluída paisagem urbana dos bairros, que o leitor pode conferir na foto ao lado.

O diagnóstico feito pelo sócio-diretor da tradicional loja Irmãos Haluli, Paulus Haluli, aponta para a necessidade de organizar questões urbanísticas básicas. “Precisamos de ruas onde seja possível o pedestre caminhar, com a garantia de segurança e com banheiros públicos decentes. Nem entro no mérito sobre a necessidade de estacionamento, mas esse tripé básico no cuidado do espaço urbano não existe”, declara o empresário.

Paulus afirma que até bem pouco tempo chegava ao trabalho de transporte público, mas a insegurança fez com que mudasse a rotina e passasse a se deslocar de Uber até a loja. “Infelizmente os furtos são uma constante. Desisti de vir trabalhar de ônibus, porque já tentaram me assaltar”. Ele lamenta também a situação do Mercado de São José. “Infelizmente os turistas que visitam o bairro encontram o mercado em condições tristes, com um banheiro da Idade Média”, critica.

O trânsito caótico mistura pedestres, ciclistas, veículos motorizados e comerciantes carregando mercadorias com fretes. Foto: Tom Cabral

Para os especialistas, há motivações locais que geraram o abandono de São José e de Santo Antônio, como intervenções urbanísticas pouco eficientes ao longo das últimas décadas. Mas, eles ressaltam que em muitos países houve um fenômeno perverso de esvaziamento dos centros urbanos, que afetou também a capital pernambucana. “Os problemas que encontramos hoje no Centro do Recife são dificuldades sofridas pelas cidades europeias no século passado e que foram superados com muita garra”, afirma a arquiteta e professora da Unicap (Universidade Católica de Pernambuco), Amélia Reynaldo, em audiência pública realizada na Câmara do Recife, promovida pelo vereador Jayme Asfora para discutir soluções para a região. Nessa ocasião, a CDL sugeriu que fosse incluído no Plano Diretor da cidade um dispositivo que obrigue o poder público a fazer um plano específico para o Centro que contemple as esferas econômicas, ambientais, sociais e espaciais.

A especialista ressalta que grandes destinos turísticos internacionais dos nossos dias, como Paris e Barcelona, estavam esvaziados, com prédios históricos ameaçados, ruas tomadas por veículos e com área comercial completamente desregulada em meados do século passado. “As cidades fediam, o comércio informal estava colado a edifícios notáveis, que estavam em ruínas. Era uma situação que se parecia muito com a realidade do Recife que conhecemos”, conta a arquiteta.

A negação do Centro da cidade no mundo todo teria origem na teoria dos higienistas de que esses locais não serviam para habitação e que todo o espaço precisava ser renovado e, posteriormente dos racionalistas, que sugeriram a demolição das quadras e prédios insalubres para a verticalização das cidades, preservando apenas alguns edifícios simbólicos. No Recife, o processo de “modernização” desses bairros contribuiu significativamente para o esvaziamento do seu uso para moradia.
Apesar dessa análise histórica, Amélia avalia que o caso do Centro do Recife − considerando um espaço que extrapola esses dois bairros − tem mais potenciais que dificuldades. “A região é uma oportunidade, muito mais do que um problema. Temos uma geografia fantástica, um patrimônio cultural incrível e um comércio dinâmico, que não existe nada que não se encontre nele”, elogiou a arquiteta.

O camelódromo e a localização dos pontos de ônibus são alguns dos aspectos a serem modificados na opinião do arquiteto e urbanista José Luiz da Mota Menezes. “As estações de BRT na Avenida Guararapes deveriam ser removidas e colocadas mais adiante. Quem desce hoje nessa via precisa seguir a pé um longo percurso até a área comercial”.

A quantidade excessiva de linhas de ônibus em algumas paradas, como na frente da Praça do Diario de Pernambuco, também foi criticada pelos comerciantes. Mas o trânsito confuso, em especial nas proximidades do camelódromo, mistura pedestres, ciclistas, comerciantes carregando mercadorias com fretes e veículos motorizados. Para quem chega de carro, a luta por uma vaga de estacionamento expõe a dificuldade do uso de transporte particular na região. “A grande intervenção negativa no bairro foi a construção da Avenida Dantas Barreto. Mas deveria ao menos ter sido concluída. Deveria ter saídas para a Avenida Sul e a Rua Imperial. Como não aconteceu, ficou o vazio, sem uso”, explicou o urbanista acerca da difícil mobilidade de Santo Antônio e São José.

O surgimento dos shoppings centers influenciou diretamente na situação atual de São José e de Santo Antônio na análise de José Luiz da Mota Menezes. Entretanto, o perfil do comércio popular do local acaba sendo uma característica que se difere do varejo moderno e que poderia ter ainda outra vitalidade com o reordenamento dos bairros. Tanto ele, como o sócio-diretor da Loja Irmãos Haluli ressaltaram que São José e Santo Antônio poderiam ter a atratividade em Pernambuco e no Nordeste que a região da rua 25 de Março tem para o Estado de São Paulo, por exemplo.

O arquiteto afirma que no passado estudou a possibilidade de levar o camelódromo para as proximidades da Arena Pernambuco. Porém, hoje ele sugere que esses ambulantes poderiam ocupar casas desabitadas ao longo da Avenida Dantas Barreto e de outras ruas próximas de grande circulação de pessoas. Ele destaca ainda a importância da nova vocação educacional do bairro com a chegada de instituições de ensino superior. “A renovação urbana deve ser perseguida pela realocação dos ambulantes e pela chegada dos centros universitários que estão sendo instalados”.

Os bairros de São José e de Santo Antônio, bem como o centro expandido do Recife já possuem diversos estudos e diagnósticos acadêmicos, do poder público e de organizações como a própria CDL. Algumas experiências exitosas de recuperação também já foram aplicadas na região, mas não tiveram vida longa. Diante disso, o secretário municipal de Planejamento Urbano, Antônio Alexandre, afirma que é necessária a construção de uma estratégia de revitalização com a preocupação de ser sustentável. “Nosso grande desafio é garantir a efetividade do que é discutido e planejado para, assim, alcançar a sustentabilidade desse processo. Tivemos boas experiências, mas em ciclos muito curtos. Por que não continuaram?”, indaga o gestor.

Antônio Alexandre aponta que a reflexão sobre a dimensão econômica do Centro é um dos pontos de partida para atingir esse objetivo. “Tivemos no Recife atividades econômicas importantes, como a portuária, logística e até algumas industriais, que induziram a produção de todo um ambiente com comércios, serviços e moradia, responsáveis pela dinâmica do Recife do passado que conhecíamos. Uma série de razões promoveram um deslocamento dessas atividades para outras regiões da cidade”, afirma o secretário para explicar um dos motivos do atual cenário de degradação. “Se uma transformação do bairro não tiver suporte das atividades econômicas e de novas dinâmicas sociais podemos estar pensando em fórmulas artificiais”, alertou.

Diante do vazio de diversos galpões e edifícios inteiros nesses bairros, a preocupação com o Centro Histórico ganhou uma atenção especial do caderno preliminar de propostas para o novo Plano Diretor do Recife. Entre os objetivos declarados no documento alguns são de interesse direto desses bairros, como o combate aos vazios urbanos e a preservação do patrimônio cultural. O caderno sinaliza ainda que os bairros de Santo Antônio e São José podem receber um projeto especial para promoção da requalificação urbana, a dinamização econômica com inclusão socioespacial e cuidados ambientais.
Nas próximas edições da Algomais destacaremos a história desses bairros e as propostas realizadas por especialistas e por representantes da iniciativa privada para dotar essa região tão desgastada com novas cores.

*Por Rafael Dantas, repórter da Revista Algomais (rafael@algomais.com)

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