“É importante resgatar a ideia do parto como processo fisiológico”

Brena Melo, obstetra do Imip e professora da Faculdade Pernambucana de Saúde explica nesta entrevista que as recomendações da Diretriz Nacional de Assistência ao Parto Normal Recente Diretriz do Ministério da Saúde são baseadas em evidências científicas. Confira.

ALGOMAIS – Qual sua opinião sobre a Diretriz Nacional de Assistência ao Parto Normal Recente Diretriz do Ministério da Saúde?

BRENA MELO – A Diretriz Nacional de Assistência ao Parto Normal, lançada pelo Ministério da Saúde do Brasil, no início de 2017, foi elaborada por especialistas em diversas área da saúde ligada à saúde materno-infantil e apresenta recomendações solidamente embasadas nas evidências científicas mais recentes. A tendência observada pela diretriz, de resgate do protagonismo da mulher no seu próprio parto, pode ser atribuída à necessidade de se discutir o tema “do nascer” de forma ampla com a sociedade.
Um grande estudo publicado em 2012, “O Nascer no Brasil”, verificou que mais da metade dos brasileiros nascem através de um procedimento cirúrgico, a cesariana. Em estratificações por maternidades públicas ou privadas, essa taxa de cesariana pode chegar a mais de 95% dos nascimentos, em algumas instituições privadas. Esse dado precisa ser reconhecido como alarmante. Todo procedimento cirúrgico tem seus riscos e a sociedade tem se distanciado da cultura do fisiológico, o que leva a uma cascata de intervenções, muitas vezes, desnecessárias. Então, primeiramente, é preciso levantar a discussão quanto à maneira de se nascer, tanto no âmbito individual, quanto no familiar e enquanto sociedade. Depois, é necessário refletir quanto aos elementos do sistema de saúde que potencialmente contribuem para essa realidade de elevada taxa de procedimentos cirúrgicos, tanto do ponto de vista do modelo vigente de assistência obstétrica, quanto da formação do profissional de saúde e das condições de trabalho existentes. A Diretriz foi então lançada como forma de informação para todos, sob cada uma dessas diferentes perspectivas.
Como ponto de partida desse processo de informação e educação, é importante resgatar a ideia de parto como um processo fisiológico. A sociedade está tão distanciada da naturalidade desse processo, que até mesmo o verbo “parir” ainda causa certo estranhamento para alguns quando utilizado para descrever o evento fisiológico feminino, por fazerem associações distorcidas. Se partirmos da premissa do parto como evento fisiológico e de que a maior parte das mulheres da nossa população é saudável ou não tem uma condição ameaçadora de vida, não há por que imaginar que ela não irá conseguir parir e nem há por que deixar de provê-la de condições favoráveis para vivenciar esse momento tão bonito e fisiológico.
Quanto a propiciar condições favoráveis ao parto fisiológico, nosso sistema de saúde apresenta alguns entraves. Por exemplo, o atual modelo brasileiro de assistência ao parto é hospitalocêntrico e centrado majoritariamente no médico como o profissional de saúde responsável por essa assistência.

Como é a realidade nos países desenvolvidos?

Lá o médico é o responsável pela assistência das pacientes com complicações, a menor parte da população. Dessa forma, a conta fecha – há médicos suficiente para quem precisa. Nesses locais, quem presta assistência à maioria dos partos são midwives, profissionais de saúde muito bem treinados para prestar assistência a partos sem maiores intercorrências. Além disso, na Holanda, por exemplo, cerca de 40% dos partos acontecem na própria casa da mulher, assistida por midwives. O hospital e o médico ficam de sobreaviso para caso de necessidade de transferência para o hospital.

Na Inglaterra, após ensaios clínicos randomizados, o NHS (National Health Service), o SUS inglês, recomendou que, para mulheres com parto normal anterior sem intercorrência, seja oferecida a possibilidade de parir em casa. Em países nórdicos, como a Dinamarca, por exemplo, com modelo de assistência ao parto também multiprofissional, a taxa de cesariana fica abaixo dos 15% recomendados pela OMS (Organização Mundial de Saúde). Há muito o que se discutir quanto ao modelo ideal para a nossa realidade, mas o primeiro passo é conscientizar-se da necessidade dessa discussão.
As distorções observadas no modelo vigente de assistência ao parto no Brasil interferem tanto na formação do médico, quanto nas condições de trabalho de profissionais já experientes envolvidos nessa assistência. Um bom profissional de saúde deve, ao longo de sua formação, buscar sempre o equilíbrio no aprendizado e aperfeiçoamento dos três elementos básicos para sua competência: conhecimento, habilidades motoras e atitudes.

A medicina demanda aprendizagem complexa, que é o uso constante do equilíbrio entre esses elementos. Logo, além da necessidade constante de atualização do seu conhecimento, ele precisa praticar suas habilidades manuais e manter a capacidade de reflexão, com respeito pelo paciente e empatia. Em uma maternidade superlotada, como é a realidade brasileira, até mesmo nas maternidades privadas, pode haver comprometimento desse equilíbrio. A retroalimentação desses fatores e combinação de todos esses elementos termina por não propiciar à parturiente um ambiente favorável à evolução fisiológica do trabalho de parto.

É preciso, então, um esforço constante por parte de todos para tentar minimizar essa influência negativa no processo do nascer. O profissional de saúde passa, então, a ter um papel fundamental nesse processo de autoeducação e educação da sociedade para modificação do panorama atual. A Diretriz lançada pelo Ministério é um instrumento importante nesse sentido.

ALGOMAIS –  A diretriz recomenda o fim do jejum obrigatório durante o trabalho de parto. Por que a parturiente antes precisava ficar em jejum e agora não? Quais os benefícios dessa recomendação?

O parto é um processo fisiológico intenso, leva algumas horas para acontecer e demanda muita energia da parturiente. Nada mais natural, então, do que oferecer à parturiente alimentos durante o trabalho de parto: ela precisa de líquidos e calorias. Uma comparação comum é entre um trabalho de parto e uma corrida longa. Nessas corridas são ofertados líquidos e calorias aos participantes. A lógica é semelhante.

Em situações de alta demanda do organismo, nada mais natural do que confortar a paciente em suas necessidades fisiológicas. Entram aí também a recomendação de deixar a paciente deambular, ficar em sua posição de livre escolha, com direito à mobilização e apoio das pessoas que ela escolher durante o parto. Considero a referência ao “jejum obrigatório” curiosa. Primeiro, estamos falando de mulheres, em sua maioria saudáveis, ou sem condições clínicas ameaçadoras da vida, logo, com seu poder de decisão preservado. Elas têm então autonomia para decidir se querem e o que querem ingerir durante o trabalho de parto.

Recomenda-se a ingesta de líquidos claros sem resíduos, como água e chás, e alimentos de alta concentrações calórica em pequeno volume, como chocolates, mel, ou nozes e castanhas. Um conceito como o de jejum imposto foi fruto de um receio quanto à possibilidade da mulher, em trabalho de parto, necessitar de uma anestesia geral (com intubação de vias aéreas) e broncoaspirar (quando comida vai parar nos pulmões). É importante lembrar que, em parturientes saudáveis e sem condições ameaçadoras da vida, essa necessidade clínica é altamente improvável. Portanto, não justifica submeter todas as parturientes, de forma massificada e sistemática a jejum imposto durante um processo intenso como o trabalho de parto.

Em processos fisiológicos intensos, como corridas ou trabalho de parto, o organismo se beneficia de um aporte de líquido e glicose, caso contrário, há desidratação e catabolismo (o organismo começa destruir células saudáveis, como proteínas). E uma mulher deve e merece estar confortável durante o seu trabalho de parto. E, por fim, o jejum não deve ser imposto pois, na improvável eventualidade de necessidade de entubação de uma parturiente, ela deve ser sempre considerada paciente de “de estômago cheio”, uma vez que esvaziamento gástrico é mais lentificado na gestante.

ALGOMAIS – Outra recomendação refere-se a colocar a criança pele a pele  com a mãe imediatamente após o parto.  Quais os benefícios dessa medida?

BRENA MELO – O processo fisiológico do nascer é um resultado da natureza após alguns milhões de anos de seleção natural. As interações fisiológicas entre os envolvidos são inúmeras. Algumas já foram reconhecidas pela ciência há algum tempo, outras o foram mais recentemente e, certamente alguns descobertas ainda nos aguardam. Entre os benefícios reconhecidos, o contato pele a pele entre mãe e bebê imediatamente após o parto é um bom exemplo. Sabe-se, já há algum tempo, que ele diminui a incidência de hemorragia pós-parto. Ela pode ocorrer em até 2 a cada 10 partos, e quando não bem conduzida, pode levar ao óbito, e é a maior causa de morte de mulheres no parto (morte materna) no mundo. Na maior parte dos casos, ela ocorre por uma contração insuficiente do útero logo após o parto (hipotonia uterina). Não favorecer essa prática, recomendada pela Diretriz, é expor a mãe a riscos inaceitáveis.

Mais recentemente, começam a se verificar outros benefícios como uma menor taxa de transferência dos bebês para a UTI neonatal, mesmo nos casos de cesariana. Em estudos de epigenética (estuda a forma como as doenças de predisposição genética irão se manifestar em cada pessoa com maior ou menor intensidade), verificou-se também que, a colonização do bebê pela flora fisiológica (bactérias de proteção) materna que ocorre quando o bebê é exposto à pele da mãe de forma precoce, traz benefícios a longo prazo ao diminuir o risco desse bebê desenvolver diabetes no futuro, por exemplo.

O bebê, quando colocado no colo da mãe, logo após o parto, estimula a liberação de ocitocina, hormônio que ejeta o leite para a amamentação e ao mesmo tempo, contrai o útero. Os benefícios da amamentação são inúmeros, físicos e psicológicos. O contato pele-a-pele precoce aumenta a taxa de sucesso na amamentação, com benefícios tanto para a mãe quanto para o bebê. Mulheres que amamentam têm menor chance de depressão pós-parto e câncer de mama. Por sua vez, um bebê amamentado tem melhor resistência a doenças, menor chance de doenças cardiovasculares no futuro, melhor desenvolvimento cognitivo e psicomotor, além de inúmeros outros benefícios.

E os benefícios do contato pele-a-pele não se restringem ao momento do parto. Estudos em UTIs neonatal, demonstram que, bebês expostos à pele dos pais, sentem menos dor e tem menor nível de hormônios do estresse. Além disso, em uma revisão sistemática sobre o tema, verificou-se que, em bebês admitidos em UTIs e colonizados por bactérias resistentes, aqueles expostos ao contato pele a pele tiveram melhor taxa de descolonização. Isso parece ser apenas a ponta do iceberg dos benefícios dessa prática.

ALGOMAIS –  A Diretriz também outorga o direito da gestante à anestesia e a reaplicação  dela durante o parto.  Por que a ausência de dor é benéfico para mãe e o bebê?

BRENA MELO – Ao se prestar assistência a um parto, o que se deve buscar é o conforto, associado à segurança da parturiente. O parto, com suas modificações do organismo para a expulsão do concepto, traz repuxos e incômodos, muitas vezes sentido como dor. É um processo intenso e a dor pode ser intensa.

Mas é muito importante se refletir como melhor lidar com a dor. Há o ciclo medo-tensão-dor. Quanto mais medo se tem da dor, maior a tensão e maior a probabilidade de ela ser sentida de maneira mais intensa durante o parto. Nessa consideração quanto à dor do parto, vale refletir como se lida com a dor em outras situações cotidianas. Por exemplo, as pessoas frequentemente submetem-se a procedimentos estéticos, desde depilação, limpeza de pele, tatuagens ou até lipoaspirações. Sabe-se que são processos dolorosos, mas foca-se no resultado.

Outro exemplo são as pessoas acostumadas a atividade física. Mesmo um peladeiro de final de semana sabe que há chance de torções, fraturas, esbarros, encontrões e alguns outros episódios dolorosos ao longo da partida/atividade, mas, dificilmente, se desiste de participar da brincadeira por esse motivo. Novamente, foca-se no resultado: diversão, saúde, bem-estar.

Com o parto, deve-se buscar a mesma lógica: focar no resultado – uma mãe e bebê saudáveis que vivenciaram um momento fisiológico cheio de benefícios. Lógico, o momento é intenso e a dor poder ser também bastante intensa. Por isso, existem métodos farmacológicos (anestesia, analgesia) e não-farmacológicos (massagem, imersão em água quente) de controle da dor. A combinação de quanto e quais desses métodos serão adotados no momento do parto deve acontecer entre a parturiente e quem estiver prestando assistência a esse parto.

Idealmente, esse planejamento deve ser feita de forma prévia, e registrado em um plano de parto. Sabe-se que, no momento do parto, há possibilidades de saída do previsto, mas refletir previamente quanto às possibilidades leva à busca de informações e consequente empoderamento da mulher e sua família para parir e escolher. Daí a recomendação da Diretriz quanto à oferta de anestesia, com disponibilidade de reaplicações, se necessário. O importante é o conforto da parturiente, ao aliviar a dor, associado à segurança.

ALGOMAIS – Como é o trabalho das doulas e quais suas vantagens?

BRENA MELO – A palavra doula vem do grego, significa “aquela que cuida”. Na assistência ao parto, esse personagem está presente para dar conforto à parturiente. Ela pode ser uma pessoa leiga ou profissional de saúde, mas que, nesse momento, não estará responsável pela vigilância e monitoramento clínico da parturiente. Seu papel deve ser de confortar. De preferência, sua relação com a parturiente deve começar durante a gestação, para que, ainda antes do parto os envolvidos nesse parto (gestante, cônjuge, familiares, equipe de saúde) conversem quanto ao perfil dessa assistência, sobre quais os desejos e possibilidades.

Durante o parto, a doula pode oferecer água, bombons, massagem, estímulo emocional, lembrar à paciente sobre os planos e desejos discutidos previamente. E esse trabalho tem fundamental importância para o sucesso de um parto normal. Revisões sistemáticas sobre o tema apresentam sólidos resultados. Mulheres que tiveram a assistência de uma doula em seu trabalho de parto tiveram: maior chance de parto vaginal, com partos mais curtos, bebês nascidos em melhores condições de oxigenação e menor chance de parto instrumental (fórcipes ou vácuo).

ALGOMAIS – E quais os benefícios das massagens, banhos quentes e imersão na água durante o trabalho de parto?

BRENA MELO – Esses são todos métodos não farmacológico de alívio da dor, estão descritos na Diretriz e devem ser disponibilizados pelos serviços de saúde que prestam assistência ao parto. Muitas mulheres optam apenas por esses métodos e relatam um elevado grau de satisfação com o parto, algumas chegando a descrever um parto sem dor. Se entendemos que, durante um trabalho de parto, fundamental é confortar a parturientes, entende-se a importância desses métodos.

 

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