Inovações criativas modificam espaço urbano no Recife

*Por Rafael Dantas

As cidades irão abrigar 70% da população mundial até 2054, segundo estimativa da Organização das Nações Unidas. Para o Brasil, a expectativa que se desenha é que 92,4% dos habitantes vão morar nas zonas urbanas. Diante da concentração populacional nas metrópoles, buscar inovações que amenizem os desconfortos desse crescimento é uma das urgências do Século 21. No Recife, diversos atores públicos e privados têm-se mobilizado para construir alternativas para alcançar melhorias na mobilidade, condições de moradia, qualificação das áreas públicas e no próprio engajamento das pessoas no cuidado com o espaço urbano. Alguns projetos gestados na capital pernambucana, inclusive, já conquistaram notoriedade internacional e começam a ganhar escala no território.

Nos últimos anos surgiram no Recife estruturas vocacionadas para criar soluções para a cidade, como a Secretaria de Inovação Urbana (da Prefeitura do Recife), o Inciti (grupo de Pesquisa e Inovação para as Cidades da UFPE), o LOUCo (Laboratório de Objetos Urbano Conectados do Porto Digital) e o FAB LAB Recife. ONGs, associações, startups e algumas empresas também estão conectadas com esse ecossistema focado no espaço urbano que tem um pé nas melhores práticas de arquitetura e urbanismo e outro no uso de novas tecnologias. Uma linha em comum de todas as iniciativas é o esforço em envolver a população na formulação dos projetos.

Equipe desenvolvendo projeto na FAB LAB Recife. Foto: Divulgação

“O Recife vive um boom de projetos e iniciativas de inovação urbana, sejam inovações tecnológicas ou sociais, mas isso é um fenômeno que também pode ser visto em diversas cidades no mundo. Tem relação com a aceleração de colapsos urbanos e com a chamada consciência de geração: os nativos digitais, que têm como características naturais a inovação, a agilidade e a colaboração. Então, junte uma série de problemas urbanos que precisam ser resolvidos, com uma geração ávida por colaborar e botar a mão na massa e temos a mistura perfeita para ações de inovação urbana”, analisa a sócia e coordenadora de tecnologia e conhecimento do Fab Lab Recife, Cris Lacerda.

Frente aos desafios de defesa civil no Recife relativos à população que vive em condições de risco em barreiras, a prefeitura criou, há alguns anos, a Secretaria Executiva de Inovação Urbana. O órgão começou com a aplicação de geomantas coloridas nos morros para evitar deslizamentos, o que já era uma inovação made in Pernambuco, com baixo custo e potencial de acelerar a atuação do poder público pelo município. Mas a criatividade e a busca de novas ferramentas de intervenção urbana não pararam por aí.

O Recife viu nos últimos anos os muros de arrimo, casas, escadarias e calçadas ganharem cores por meio do programa Mais Vida nos Morros. Com tinta, paisagismo, criatividade e participação dos moradores, a iniciativa criou parklets, hortas comunitárias, áreas de lazer e convivência, onde antes existiam pontos de confinamento de lixo ou espaços ociosos. Depois disso, passou a focar no engajamento das crianças, colorindo, por exemplo, o caminho delas para a escola. A medida foi realizada após ouvir os pequenos sobre o que eles desejavam para seu bairro. O novo projeto da secretaria é incentivar a coleta de embalagens plásticas e trocá-las por utensílios domésticos feitos com o material reciclado, como cabides e cestos.

Morros do Recife ganharam cores e vida. Foto: Andrea Rego Barros

“O Mais Vida nos Morros é uma política pública, mas é mais parecida com uma startup. Começamos por uma estratégia de defesa civil, que se reinventou várias vezes e hoje tem um foco na primeira infância”, explica o secretário Tullio Ponzi. O programa já foi reconhecido pela ONU-Habitat (Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos) como uma referência nacional em inovação em políticas públicas. “Quando construímos as ações junto com a comunidade, promovemos essa relação e engajamento do cidadão com a cidade”. O programa terá a primeira iniciativa fora da área de morros. Em 2019 o novo mote é o Mais Vida Teimosa, desenvolvendo inovações com a população de Brasília Teimosa.

Além do poder público, há iniciativas privadas também de olho na condição de vida das populações mais carentes. Com um olhar sensível à condição precária das moradias das regiões mais populares, o arquiteto Antônio Neto criou a empresa social Arquitetura Faz Bem. Inicialmente a comunidade Entra Apulso, na Zona Sul, é o alvo das ações, que tem por objetivo qualificar as residências com orientação técnica e execução das obras com custo popular.

Neto reforma casas na Entra Apulso com custos baixos. “Nosso negócio é oferecer soluções de saúde a partir da arquitetura nas comunidades carentes”. Foto: Tom Cabral

“Nosso negócio é oferecer soluções de saúde a partir da arquitetura nas comunidades carentes. Observamos, principalmente, se o ambiente é iluminado e ventilado, que são fatores que interferem na saúde física e emocional de uma família. Muitas casas na periferia têm obras inacabadas, por falta de recursos, ou foram feitas sem nenhuma orientação técnica. Para atender essa necessidade, criamos projetos mais enxutos”, conta o empreendedor.

O preço reduzido e uma condição de pagamento mais elástica contribuem para que mesmo as famílias de baixa renda consigam financiar uma transformação na sua moradia. Outra alternativa é a realização de campanhas de arrecadação para levantar os recursos para as obras, como a que foi realizada recentemente com apoio do Shopping Recife para a reforma de cinco residências.

Por ser uma cidade cortada por rios e riachos, o Recife vê surgir nos seus cursos d’água e nas suas margens outras iniciativas de transformação com bastante criatividade. Uma delas foi desenvolvida pelas crianças incomodadas com o lixo jogado no Canal do ABC, na Mustardinha. Elas são estudantes da Escola Municipal Professor Antônio de Brito Alves, que possui um laboratório maker da FAB LAB Recife, e criaram uma ecobarreira de garrafas PET, uma espécie de rede que tem o objetivo de impedir que os resíduos descartados no canal sigam com as águas. A solução de baixo custo, que contou com apoio da Emlurb na sua execução, foi apresentada em feiras científicas em São Paulo e em Assunção, no Paraguai.

Criada por estudantes da rede municipal, a ecobarreira, rede feita de garrafas PET, evita que os resíduos jogados no canal sigam com as águas. Foto: Andrea Rego Barros/PCR

Nas margens das águas do Recife, o maior projeto de inovação urbana em andamento é o Parque Capibaribe. Desenvolvido por meio de um convênio entre a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação e o Inciti, ele propõe que a capital pernambucana se torne uma cidade-parque a partir da criação de uma área com no mínimo 500 metros de extensão nas duas bordas ao longo de todo o rio.

“O Parque Capibaribe é uma mudança de paradigma no projeto de planejamento urbano. Inova com uma visão de zona parque, promove novas áreas caminháveis e cicláveis por todo esse trecho. Há uma requalificação com qualidade no tratamento urbanístico, com conceitos de ruas compartilhadas e gentileza urbana, que incentiva a derrubada de alguns muros para colocação de gradis. Inovação também na construção de passarelas sobre o rio, que preservam a vegetação, mas abrem janelas para ter uma experiência sensorial para a população”, detalha o arquiteto Luiz Vieira, professor da UFPE e um dos coordenadores da iniciativa.

O projeto da startup Navegue também está conectado ao parque. A ideia é desenvolver um tipo de “Uber” que conectará os barqueiros que fazem as travessias pelo Capibaribe com os moradores da cidade via um aplicativo. A nova tecnologia vai impulsionar a mobilidade fluvial, contribuindo para o trânsito e para a geração de renda dos barqueiros.

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O Navegue teve neste mês de outubro um período de avaliação e teste no trajeto entre o Jardim do Baobá, primeira peça do Parque Capibaribe, e o Marco Zero. A mobilidade pelo trecho deve beneficiar trabalhadores do Porto Digital e de outras empresas de tecnologia, de acordo com Caio Scheidegger, sócio da startup. Antes mesmo de ter o serviço implantado na cidade, a Navegue recebeu recentemente o prêmio Green is the New Glam, do Principado de Mônaco, e fará uma missão comercial para o país europeu em breve.

Ainda na pegada da mobilidade, mas pelas ruas e becos da Comunidade de Caranguejo Tabaiares, nasceu o Bota pra Rodar (BpR). Criado pela Ameciclo (Associação Metropolitana de Ciclistas do Recife), o projeto arrecadou bikes, capacitou os moradores para revitalizá-las e construiu um sistema de compartilhamento de bicicletas gratuito para os moradores cadastrados em um aplicativo.

Projeto Bota pra Rodar funciona em Caranguejo Tabaiares e chegará na Comunidade de Santa Luzia, ambas no Recife. Foto: Divulgação

“As bicicletas comunitárias são uma ferramenta de inclusão social. Além de todos benefícios que o veículo traz para a cidade, o sistema ajuda homens e mulheres a otimizarem o tempo de deslocamento para seus pêndulos diários”, afirma a coordenadora do BpR, Vanessa Santana, que destacou a economia de até 40 minutos nas viagens diárias de alguns moradores até o trabalho. No mês passado foram contabilizadas 1.231 viagens, sendo 25% feitas por mulheres.

A iniciativa, que já foi premiada nacionalmente pela Associação Transporte Ativo no ano passado, será, agora, implantada na comunidade de Santa Luzia, na Zona Oeste da cidade. A campanha de arrecadação de bikes e as oficinas de capacitação em mecânica, pintura e empreendedorismo serão os primeiros passos para essa nova etapa.

 

 

AJUDA DA CULTURA MAKER

Você já imaginou um parklet para cultivo de hortas nos espaços urbanos? Ou uma lixeira inteligente no metrô, que dá descontos aos passageiros que descartam o lixo corretamente? Ou ainda uma simulação de árvore, com banquinhos sombreados onde é possível carregar seu celular? Esses são apenas alguns pequenos exemplos de soluções urbanas desenvolvidas a partir da cultura maker que estão sendo gestadas no Recife por meio dos laboratórios de inovação da cidade. O Fab Lab Recife, localizado no Bairro do Recife e o LOUCo (Laboratório de Objetos Urbanos Conectados), do Porto Digital, são as referências nesse trabalho na capital pernambucana.

Diferente dos laboratórios de química que fazem parte do imaginário popular, com suas pipetas e tubos de ensaio, esses espaços de prototipagem urbana possuem equipamentos high tech e alguns instrumentos típicos de uma marcenaria ou oficina. Focados em criar protótipos de estruturas para melhoria da vida urbana, o LOUCo e o FAB LAB Recife contam com máquinas como impressoras 3D e cortadoras a laser. Mais que estrutura, são espaços para fomentar a cultura maker, que é uma proposta para que pessoas comuns possam fabricar, modificar ou aperfeiçoar diversos objetos e projetos.

“Quando trabalhamos com a perspectiva de inovação urbana, estamos tentando efetivamente lidar com os problemas reais da nossa sociedade e entender como podemos trazer as antigas e as novas ferramentas para usá-las e gerar o máximo de valor possível”, explica Leonardo Lima, coordenador do LOUCo.

Com paineis solares, Io-Tree pode ser uma parada de ônibus, de táxi ou estação de veículos compartilhados e permite fazer recarda de celular. Foto: Divulgação

Um dos projetos desenhados dentro do laboratório que está sendo testado no Portomídia é o Io-Tree. Trata-se de um mobiliário urbano que simula uma árvore e agrega múltiplos serviços. Com bancos e coberto por um painel solar, ele pode ser uma parada de ônibus, táxis ou mesmo uma estação de veículos compartilhados por aplicativos. Um diferencial é que com a energia solar gerada, o Io-Tree oferece a possibilidade de as pessoas fazerem a recarga de seus smartphones e tablets. Além disso, o projeto dispõe de iluminação noturna e pode até servir como plataforma para câmeras de monitoramento.

EM REDE
“A grande marca do FAB LAB Recife não é o desenvolvimento de produto, mas o desenvolvimento de processos inovativos de pensar soluções para a cidade. Tivemos muitas atividades e eventos ao longo dos últimos cinco anos que mobilizaram a população em geral”, conta Cris Lacerda, sócia e coordenadora de tecnologia e conhecimento do Fab Lab Recife. Nesse esforço de levar as pessoas a se envolverem em busca de inovações para a cidade, o espaço já realizou para a população oficinas e makeathons, maratona colaborativa de inovação que reúne grupos de pessoas com diferentes perfis e expertises em torno de um objetivo comum: criar soluções físicas ou físico-digitais para os problemas de uma instituição ou da sociedade.

As crianças da comunidade do Pilar, por exemplo, são as responsáveis pelo projeto de desenvolver um parklet (uma intervenção urbana que ocupa uma vaga de estacionamento na rua) para cultivo de horta comunitária. “Há um sentido lúdico e de aprendizado nesse projeto, construído junto com as crianças. Elas, inclusive, escolheram o nome de Parque Horta do Pilar. Isso é um sinal da carência de espaços públicos de lazer na região”, disse Peu Carneiro, designer do FAB LAB Recife. A garotada participou de uma oficina no laboratório e visitou o Serta (Serviço de Tecnologia Alternativa), em Glória do Goitá, para conhecer mais sobre agroecologia.

Outro projeto de destaque foi a lixeira inteligente, sugerida em uma makeathon por um estudante de ensino médio e morador do bairro de São José. O equipamento está conectado ao problema do lixo jogado nos trilhos e nas plataformas do metrô do Recife. Nele, o usuário teria a possibilidade de se identificar com o VEM e ser bonificado com créditos após jogar uma garrafa PET ou um saquinho plástico na lixeira.

Um dos marcos importantes para o FAB LAB Recife neste ano foi a entrada na Rede FAB LAB City, em uma parceria com a Prefeitura do Recife e a UFPE. A rede agrega 34 cidades do mundo como Paris, Boston, Barcelona e Santiago em torno do compromisso de evitar o colapso dos grandes centros urbanos no mundo.

Diante de todo esse desenvolvimento de soluções fervilhando, os pernambucanos podem se perguntar quando será possível sentir essas melhorias no cotidiano da cidade. Cris Lacerda explica que, apesar de se tratar de um fenômeno de novas soluções urbanas proveniente de empresas ou da sociedade, ainda existe o papel essencial do poder público. “Não somos agentes antagônicos ou substitutos das obrigações da gestão pública, somos complementares – podemos ajudar a apontar novos caminhos para uma série de problemas urbanos, mas o ganho de escala virá quando essas soluções forem adotadas e replicadas como políticas públicas para as cidades”, ressalta a especialista.

*Rafael Dantas é repórter da Revista Algomais e assina a coluna Gente e Negócios no Algomais.com(rafael@algomais.com)

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