“O primeiro desafio para ‘adaptar’ as cidades às águas é de reconciliação entre elas”

O professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFPE, Fabiano Diniz, foi um dos entrevistados da última edição da Revista Algomais, que abordou os riscos da elevação dos oceanos para o Recife. Conversamos com ele sobre as alternativas a capital pernambucana e sobre a pesquisa da UFPE que foi alvo da reportagem e que propõe uma “membrana anfíbia” para proteger a cidade de um dos principais efeitos do aquecimento global, o avanço das águas.

Quais os principais caminhos que as cidades tem se adaptado ao avanço das águas?

Os primeiros movimentos de “adaptação” das cidades às águas surgem como reconhecimento do fracasso de intervenções que buscavam apenas o seu controle ou “doma” em meio urbano: a canalização (muitas vezes no subsolo), retificação e revestimento de cursos d’água; a impermeabilização de grandes superfícies; o uso de rios, riachos e canais para o escoamento de águas servidas (esgotos); a erradicação da vegetação ripária (ou ciliar).

Capitaneada pelos engenheiros hidráulicos, a autocrítica que se fez a partir da década de 1970 denunciava um efeito contrário ao desejado por esse tipo de ação: aumentaram exponencialmente tanto os volumes de águas superficiais a serem escoadas, quanto a velocidade das inundações; sem espaços inundáveis às margens dos cursos d’água, tomados pela cidade, as inundações avançaram sobre espaços ocupados pelos homens e phttp://portal.idireto.com/wp-content/uploads/2016/11/img_85201463.jpgam em risco suas vidas; a poluição e a ocupação de áreas de recarga de mananciais reduziu drasticamente a oferta de água para abastecimento. Os impactos são de várias ordens: sanitários, econômicos (infelizmente os de maior visibilidade), sociais (as áreas mais pobres e precárias sofrem mais com isso), ambientais (com a supressão de todo um ecossistema associado às áreas úmidas), paisagísticas etc. Mais que isso, tais posturas levaram a um distanciamento, negação e repulsa das águas urbanas pelos citadinos.

Esse quadro levaria a mudanças de paradigmas: as soluções passam a ser desenvolvidas envolvendo outros campos disciplinares, além da engenharia: o urbanismo, a geografia, as ciências sociais em geral, a saúde, o meio ambiente etc. As novas práticas partem do princípio de que as águas precedem as cidades, que não podem ser efetivamente controladas e que o desequilíbrio de suas dinâmicas naturais, alteradas em meio urbano, torna inviável o funcionamento das estruturas e dos sistemas urbanos. Na verdade, não se deve falar do “avanço das águas”. Ainda que as mudanças climáticas apontem uma elevação sutil do nível dos oceanos e áreas sob sua influência, essas águas apenas reivindicam para si o seu espaço, “roubado” pelo homem e seu artefato cidade.

Então, como “adaptar” as cidades ás águas?

Assim, o primeiro desafio a ser enfrentado para “adaptar” as cidades às águas é o de reconciliação entre elas. Trata-se de encontrar um equilíbrio entre dinâmicas distintas e interdependentes: aquela das águas urbanas, nas quais se estabelece um novo ciclo, diferente do natural; e a da cidade, de caráter essencialmente artificializante. Neste aspecto está fundada a base de um novo paradigma: tentar “mimetizar” (imitar ou reproduzir), no processo de urbanização demandado pelo desenvolvimento urbano, as dinâmicas naturais. Várias abordagens alinham-se com esse paradigma emergente: as Green infrastructures (Infraestruturas verdes), focadas na melhoria dos serviços ecossistêmicos tendo os espaços verdes livres como componentes da infraestrutura urbana; o Low impact development (Desenvolvimento ou Empreendimento de baixo impacto), com soluções preferencialmente na pequena escala (no lote ou parcela), procurando replicar processos naturais para manejo de águas pluviais; os Sustainable drainage systems (Sistemas de drenagem sustentável), que visam à proteção das dinâmicas hídricas em equilíbrio com os sistemas urbanos; a Trame verte & bleue (Trama verde e azul), como política que insere a preservação da biodiversidade nas decisões do ordenamento territorial, dentre as mais difundidas.

Entretanto se destacam as iniciativas baseadas na noção de Water sensitive urbanism (Urbanismo sensível à água, ou WSU), desdobramento do Water sensitive urban design (Desenho Urbano Sensível à Água, WSUD), na qual se pregam planejamento, projeto e gestão urbanos que busquem a convivência e o manejo de águas nas cidades, em todas as escalas de intervenção. O WSU é uma síntese do vasto universo de medidas que caracterizam o novo paradigma de gestão de águas urbanas, incorporando os preceitos das demais abordagens listadas. Definido pelos governos australianos em sua National Water Initiative (Plano Nacional de Águas), ele é visto como “a integração do planejamento urbano com a gestão, proteção e conservação do ciclo urbano da água, garantindo que a gestão da água urbana seja sensível aos processos hidrológicos e ecológicos naturais”. Nesse documento, no item da “reforma da água urbana”, aponta-se como uma das ações centrais a “inovação e capacitação para criar cidades […] sensíveis à água” (COAG, 2004: 30).

O urbanismo sensível as águas lida com esse problema? Quais as ações estariam envolvidas nele?

O rol de ações do Urbanismo sensível à água abrange elementos chaves, como a convivência da sociedade com as águas urbanas e a exploração de todo o potencial dessas para o recreio, o abastecimento, a irrigação, o paisagismo, a preservação de ecossistemas frágeis etc. Na pequena escala, incentiva-se o manejo das águas na fonte (no terreno e na edificação, com captação e uso de águas de chuva, tetos verdes). Na escala intermediária das quadras e bairros, a recuperação ou introdução de áreas verdes livres inundáveis e lagoas/bacias de retenção de água pluviais; a recuperação e/ou renaturalização dos cursos d’água e suas margens, e respectivos ecossistemas. Em todas as escalas abrangidas pelas bacias de drenagem, a conservação da vegetação e da permeabilidade dos solos e a reprodução de elementos da dinâmica natural de águas. Mais relevante ainda, o WSU tem como pressuposto a participação da sociedade na concepção, implantação e manutenção das intervenções, dando especial atenção às ações de ordem não-estrutural, que no jargão técnico são aquelas não relacionadas às obras com projetos completos. O planejamento e a gestão devem anteceder as obras, pois que a implantação destas só se justifica com base em um detido conhecimento da realidade a transformar e a pactuação das prioridades para esse fim.

Quais as principais contribuições do trabalho sobre a Membrana Anfíbia para o Recife se preparar para o aumento das águas?

A Membrana Anfíbia, conceito desenvolvido no Trabalho de conclusão de curso (TCC) da arquiteta-urbanista Mila Montezuma, consubstancia-se numa proposta ousada e inovadora, que articula de modo abrangente as guias de uma abordagem sensível à água para o ordenamento territorial do Recife. O tema escolhido possui uma relevância inegável para uma cidade inscrita na categoria de hotspot global, classificada em 16º lugar entre as cidades mais vulneráveis do mundo frente às mudanças climáticas, conforme o IV Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (UN-IPCC, 2007). Ora, o aspecto que mais incide sobre essa classificação é o problema relacionado à prestação dos denominados “serviços hidrológicos”. Para o UN-IPCC, a garantia de manutenção dos recursos hídricos é condicionada pelo manejo destes, em uma abordagem dinâmica (adaptativa segundo os contextos), interativa (envolvendo os diversos entes e atores interessados), iterativa (sucessiva e progressiva no tempo) e multissetorial (integrando diversos setores de políticas públicas – de águas, saneamento, ordenamento territorial, saúde, meio ambiente etc.).

Em que consiste esse trabalho?

A proposta da Membrana Anfíbia abrange essas diretrizes, sob a ótica do urbanismo. Entendido como uma práxis (conjunto de ações que cooperam para um mesmo fim) que visa a promover o equilíbrio entre os diversos territórios da cidade, do ponto de vista da distribuição de benefícios da urbanização (como infraestruturas, equipamentos e serviços urbanos), o urbanismo impõe aos profissionais que abraçam sua causa um compromisso social e político com o bem comum da sociedade. O conceito desenvolvido por Mila é forte e provocativo, comprometendo-se com esses ideais ao abordar questões cujas naturezas e territorialidades podem ser entendidas como limiares: no espaço de transição e permutas entre os territórios continental/urbano e aquático (estuarino e marinho); no espaço de encontro entre eles e suas dinâmicas peculiares, naturais e antrópicas; no papel do arquiteto-urbanista em seu campo de atuação e a necessária cooperação deste com outros campos disciplinares para o desenvolvimento sustentável do Recife.

A dimensão ambiental é abordada e usada como eixo norteador do trabalho, sempre cotejada com condicionantes espaciais, sociais, econômicos e políticos na perspectiva de introdução de posturas de planejamento e gestão territorial que façam face aos desafios das mudanças climáticas e seus impactos sobre os assentamentos humanos. As soluções, resumidas na imagem da “membrana” citada, inspiram-se nas do Urbanismo sensível à água, e sua implantação é explorada por meio da sugestão da introdução de elementos físicos de proteção e uso/ocupação da interface entre águas e cidade, com o emprego de novos materiais e tecnologias.

Por fim, emerge do projeto a sensibilidade da profissional: ela se inscreve como facilitadora de um processo de transformação a ser construído cooperativamente com os entes e atores sociais imbricados com a gestão das águas e do meio ambiente no ordenamento territorial. O potencial da “Membrana Aquática” já recebe reconhecimento, pois que o TCC que lhe deu origem foi selecionado como um dos representantes da UFPE no 1º Concurso Enanparq de Projetos de Conclusão de curso, cujo tema é “Limiaridade: processos e práticas em Arquitetura e Urbanismo”.

Os reflexos da  Pandemia no mundo mudam alguma coisa no cenário do enfrentamento do aquecimento global (seja positiva ou negativamente), na sua opinião?

Entendo que a pandemia do novo Coronavírus em certos aspectos, como o aquecimento global, apenas torna mais visíveis problemas que faziam parte de um “antigo normal”. O quadro descrito, de descompasso entre o crescimento das cidades e o meio ambiente no qual elas se inscrevem, é alvo de críticas e inspira iniciativas de revisão de velhas práticas e seus impactos negativos sobre o porvir desses aglomerados humanos. Os 17 Objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS, redefinidos em 2015 pela ONU) e a Nova agenda urbana (NAU, definida em 2016, em Quito, pela ONU-Habitat), têm por finalidade a transformação dessa realidade, como expressa o ODS nº 11, de tornar as Cidades e comunidades sustentáveis.

Visto que o desenvolvimento sustentável das cidades depende da capacidade de se equilibrar as relações entre o sistema urbano e os ambientes humano e natural, eventos pandêmicos como o da Covid-19 trazem à tona e expõem a gravidade do estado em que o globo se encontra, em termos dos impactos das mudanças aceleradas sobre todos os ecossistemas por obra das ações humanas. Desse modo, não se pode avaliar como plenamente negativo o fato de se dar visibilidade à questão dos efeitos do aquecimento global e das mudanças climáticas.

A ocorrência mais constante e intensa de eventos climáticos extremos (cheias, secas, furacões etc.) já seria um alerta suficiente para a necessidade de se construir um certo grau de resiliência nas comunidades humanas. Apesar disso, as mudanças de posturas não vieram ainda no nível desejado. Talvez a evidência de que é necessário investir mais na solução desse problema para minimizar os impactos de pandemias como a atual, cujo combate se dá em boa medida pelos hábitos de higiene e de condições sanitárias dos assentamentos, impulsione uma espécie de “revolução” cultural. Nela, a ausência ou inadequação de comportamentos e ações que impeçam a propagação de vírus como o Covid-19, tornar-se-ia inaceitável por representarem risco para o conjunto da sociedade (e da população do planeta em geral). Vinculadas à frentes de combate e mitigação das mudanças climáticas, as reações à pandemia podem representar uma oportunidade para ampliar o grau de consciência dessas transformações e da necessidade de mudar as culturas humanas.

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*Por Rafael Dantas, repórter da Algomais (rafael@algomais.com)

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