“Creche não é só um local para deixar a criança”

A neurociência “invadiu” a área da educação ao comprovar o que estudiosos já propagavam: cri-anças de 0 a 3 que não são estimuladas podem ter o desenvolvimento do seu cérebro afetado e prejudicar o aprendizado. Como a escola pode ajudar nesse processo? O que fazer com os peque-nos que não estão no ensino infantil, ou cujos pais são analfabetos, e moram em condições insalu-bres? Desafios como esse, têm levado o secretário de Educação do Recife Alexandre Rebêlo a buscar soluções criativas e a pedir o apoio de toda a sociedade. Nesta entrevista a Cláudia Santos, ele conta também como tem enfrentado o analfabetismo funcional e incentivado os alunos a par-tir da robótica, do cinema e do rádio. Sua meta é levar o Recife, que sempre esteve entre as cinco piores cidades do País no ensino fundamental, segundo o Ideb (Índice de Desenvolvimento da Edu-cação Básica) a ficar entre as 10 melhores do Brasil em 2021.

Quais os principais desafios da educação?
Os desafios da rede pública municipal são divididos em três grandes blocos. O primeiro é educação infantil, abrangendo crianças do berçário até 5 anos, o segundo é o ciclo da alfabetização (5 a 8 anos). Em ambos atendemos 70 mil crianças. O terceiro bloco é o fundamental 2 (este a gente divide a responsabilidade com o Estado) e envolve 10 mil alunos adolescentes. Em relação à educação infantil, hoje em dia, as pesquisas em neurociência, que utilizam ressonância magnética, comprovam o que já era percebido há 60 anos por pensadores como Piaget: na primeira infância em especial, dos 0 aos 3 anos, é a fase de formação cerebral da criança e, em muita medida, determina o desenvolvimento do ser humano em sua vida inteira. Quando a criança é estimulada de forma correta, ela cria um volume tal de sinapses (conexões entre os neurônios) que quando chegar aos 5 anos, ela passa a descartar as sinapses que não está mais usando e quando estiver com 10, 11 anos, esse processo se estabiliza, isto é, torna-se um adulto formado do ponto de vista cerebral. O lado positivo é que podemos estimular essa criança. O lado negativo é que se essa criança na primeira infância, em especial de 0 a 3 anos, sofre maus tratos, é agredida, passa fome, cria-se um nível de estresse cerebral que desmonta e mata as sinapses e não as recupera nunca mais. A partir do que está sendo colocado na ciência a gente procura hoje enfrentar dois grandes desafios na educação infantil. Um deles é a criação de vagas nas creches da rede municipal.

Qual é o déficit de vagas?
Temos 17 mil crianças na educação infantil. Nas creches de 4 a 5 anos conseguimos universalizar, mas de 0 a 3 anos temos hoje 1.500 pedidos de instituições como Ministério Público, Conselho Tutelar e pessoas que formalizaram a demanda que atendemos, mas ainda temos cerca de 700 pedidos sem atender. Durante nossa gestão foram construídas 12 creches, aumentamos 18% o número de vagas. Temos mais quatro em construção e um projeto de ampliação das que já existem. O segundo desafio é a qualificação do que se faz nessa creche. Creche não é depósito de criança. No passado havia esse viés assistencialista, em que se deixava o filho para poder trabalhar. Mas a educação tem a obrigação de fazer um trabalho direcionado para desenvolver essa criança desde o berçário. Por isso, criamos o programa Brinqueducar, um conjunto de brinquedos e livros, com viés pedagógico para ser usado nessa primeira infância. Os funcionários recebem um manual abordando todos os brinquedos que receberam e como trabalhar com eles, de acordo com a faixa etária das crianças. Por exemplo, um conjunto de aramado trabalha a coordenação motora fina da criança, que depois vai permitir a ela pegar num lápis ou caneta. Ou fantoches que trabalham a imaginação e criatividade.

Qual a dificuldade para implantar isso?
Para a criação de vagas trata-se de uma questão financeira e de espaço físico na cidade. Todas as vagas são bancadas basicamente pela prefeitura. Uma creche custa algo como e R$ 3 milhões, mas para manter uma criança dentro dela custa muito mais, R$ 14 mil por ano. Algumas creches já existentes não têm problema material e são superiores às particulares. O desafio é que algumas delas não têm estrutura adequada. Quase metade das nossas escolas são casas adaptadas, ou seja, só metade da rede foi feita para ser escola, algumas eram imóveis de associações de moradores ou um galpão. Num processo de 30 anos, é claro que algumas delas foram ajustadas, melhoradas e são escolas bastante descentes, mas mesmo assim, não são foram feitas para serem escolas, que têm que ter pátio, espaço para crianças comerem, local para a criança olhar a natureza. A cons-trução da compreensão dos professores e de todos os profissionais da área de educação da necessi-dade de desenvolver a criança tem melhorado a cada dia, em razão do volume de informações que já foram feitas sobre a compreensão de como usa o brinquedo e como se estrutura uma aula e também pelo aporte de tecnologia. Recife hoje tem-se tornado referência em educação infantil. É um momento muito rico. Tive a oportunidade de participar de um curso da Universidade de Harvard, financiado pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, de São Paulo, voltada para o desenvolvimento da primeira infância. A universidade conta com o primeiro centro de pesquisa sobre a primeira infância, um hospital infantil que tem a maior produção de conhecimento sobre o tema. Numa aula foi exposto que o importante para as crianças dessa idade é a relação, a interação. Se ela está no berço e você está lavando os pratos, fale com ela, cante e brinque com ela, aponte as coi-sas para ela. Isso desenvolve o cérebro. Qual o desafio gigantesco nosso? Quem é nosso cliente, os pais e mães das crianças? Onde moram? Em barraco, com chão de barro, onde residem seis, sete pessoas, sem banheiro. Uma vez, falando com a diretora de uma escola, ela me disse que muitos pais tratavam as crianças de forma agressiva, as crianças, não comiam, nem tomavam banho em casa. Ou a gente começa a qualificar esse pai e essa mãe, e necessariamente não pre-cisa estar na creche da prefeitura para fazer isso, ou a gente vai sempre correr atrás do prejuízo.

E o que tem sido feito para sensibilizar esses pais?
Adotamos uma ideia que partiu da área pedagógica: temos 8 mil alunos da EJA (Educação de Jo-vens e Adultos), que geralmente assistem às aulas à noite. São desde jovens de 19 anos até senho-res de 60 anos, muitos são pais, mães, avós ou têm alguma relação com crianças pequenas. Então abrimos o primeiro curso de brinquedista (profissional com qualificação para brincar com crian-ças, tendo em vista o aspecto educativo). Dos cinco dias da semana que eles vêm para a escola, um é dedicado à aula desse curso. Fizemos um convênio com a Fafire, que tem uma boa equipe voltada para a neurociência, que mostram a essas pessoas porque é importante a relação com as crianças para o desenvolvimento do cérebro delas, como a criança reage a uma situação de es-tresse. Essas informações são fornecidas para essa fatia da população que é a mais pobre. São 400 estudantes, no final do curso, escolheremos os 40 melhores brinquedistas que serão contratados por nós.

Mas como ampliar essa ajuda aos pais com outras iniciativas?
A Secretaria de Educação não resolverá sozinha a questão social. O movimento da sociedade como um todo pode provocar realmente um movimento mais forte. A gente vem buscando dialogar com algumas associações, primeiro para trazer o assunto à tona e sensibilizar. Depois para pensar formas de articulação. Um empresário, por exemplo, pode trabalhar esse tema com seus funcionários. Uma empresa que tenha 5 mil empregados, pode fazer algumas ações. O ideal, porém, mais caro, seria fazer uma creche, mas palestra de informação, sensibilização, material de folheteria, ela consegue fazer. Com os pais dos meninos que estão nas nossas creches é mais fácil. Temos o trabalho de trazê-los mais para perto da escola. Nesse semestre vamos intensificar as reuniões microrregionais, onde vamos colocar a importância da participação deles no desenvolvimento dos filhos. O desafio é que o grosso dessas crianças não estão na rede, são necessárias mais vagas e muitos pais não botam os filhos na creche antes dos 3 anos, porque só é obrigatório a partir dos 4 anos. Trata-se de um grande contingente e como vimos depois dos 3 anos não se recuperam mais as sinapses. Quem já não se deparou com um funcionário na sua vida profissional para o qual você tem que dizer 10 vezes a mesma coisa. E aí, pensamos: esse funcionário não aprende? Não, porque ele não comeu quando era criança, não foi estimulado, é limitado. A gente tem que começar a romper com isso, e este é o desafio maior da educação hoje. E só vamos colher os frutos desse trabalho no futuro. Um aluno que começou conosco na creche, em 2013, só conheceremos os resultados lá na frente. Existe ainda a questão emocional, muitas vezes, um estresse sofrido na infância dá origem a problemas que vai transformar a pessoa num indivíduo pessoa violenta. Já existem vários estudos comprovando essa correlação. Muitas vezes um adolescente que cometeu um delito, antes havia evadido da escola. Agora quando analisamos sua vida na infância observamos que esse adolescente sofreu com seu desenvolvimento.

Como resolver o problema do analfabeto funcional?
Existe um estudo do MEC chamado ANA (Avaliação Nacional da Avaliação), realizado com alunos ao final do terceiro ano do ensino fundamental. O último foi em 2016 e mostrou que no País 50% das crianças ao final do ciclo da alfabetização saem sem a leitura e a escrita adequadas. No Nordeste esse percentual sobe para 70%. Na realidade local do Recife, isso é fruto de uma prática inadequada implantada nos últimos 25 anos. Isso foi intencional? Não foi uma evolução histórica. Até o final dos anos 80, éramos alfabetizados por métodos fonêmicos, com as cartilhas. Depois houve um posicionamento muito forte da universidade de essa não era a forma correta de se ensinar. Então houve uma “caça às bruxas” das cartilhas. O problema é que não houve um método que substituísse o silábico. Aliado a isso, o processo de ciclo que foi mal implantado. Esse processo parte do princípio que nem toda criança é igual. Então criou-se o ciclo de três anos para a criança ser alfabetizada, que permite contemplar todos os alunos que aprenderam em velocidades diferentes. Só que o que não se estipulou o que a criança deveria aprender até os 6 anos, depois até os 7 e em seguida até os 8 anos. Se ela não aprendeu aos 6? A solução era: “deixa, ela aprende depois” e assim sucessivamente. No Recife acabou-se com a nota até os 8 anos. Era apenas conceito: em evolução, em avanço, sendo desenvolvido. Em 20 anos, desarrumou a rede do ponto de vista de se ter uma lógica do que a criança vai aprender em cada ano. Se não for assim não avança. Para o aluno aprender ele tem que saber que letra representa som, depois que palavra é uma junção de letras, em seguida que existe sílaba dentro da palavra que são formadas por fonemas. Mas com a decisão de que não se pode ter mais cartilha, não pôde se ter mais nada. Vivemos esse Laissez-faire durante 20 anos. Uma professora chamada Magda Soares, a maior especialista em alfabetização do País, é uma senhora com seus quase 90 anos, e a idade permite que ela diga um bocado de coisas que se eu disser serei execrado (risos). Ela diz que se deve ter método, forma de ensinar, medição, acompanhamento da criança, não da forma antiga. Esqueça a cartilha. Ela mora em Lagoa Santa (MG) e fui lá conhecê-la. Pela metodologia dela é necessário fazer diagnoses, que é uma avaliação para saber o grau de conhecimento da criança. Produzimos um material para a rede para o professor fazer esse acompanhamento e mostrar onde ele tem que trabalhar mais afinco com determinada turma e aluno. De acordo com a diagnoses, produzimos um material para aqueles que apresentam dificuldades numa determinada fase da alfabetização. Isso não existia na rede, foi implantado no ano passado.

Como foi a aceitação dos professores?
Eles gostaram e elogiam muito material. Antes um bom professor entrava na internet montava o seu próprio material, depois levava para imprimir na escola, mas aí não tinha impressora, faltava papel, etc. Ano passado esse material foi para a metade da rede, este ano para a rede inteira. Temos também vários softwares porque tem crianças que fica mais estimulada a aprender no computador. Estamos trabalhando com crianças de 6 anos. O resultado desse trabalho só será concluído quando chegar no 9 ano. Para você ter uma ideia da situação, numa prova para estudantes do 9º ano, o texto para ser interpretado era algo como: Na era do descobrimento, Portugal se destacou. A pergunta era: qual país se destacou na era do descobrimento? Havia as opções: Inglaterra, Portugal, França, etc. Cerca de 60% não acertou. Por que? Eles não sabem o significado de era, nem de descobrimento, nem que Portugal é um país. Agora isso acontecia porque na aula de história o aluno não sabia ler ou lia mal. Ele começa, então, a perder a referência daquela escola. Imagine uma escola em que você não compreende o que o professor está dizendo? É como estar numa aula de russo avançado. Aí começa a aumentar a evasão.

E como vocês atuam no Fundamental 2?
Nesta fase os alunos são adolescentes e muitos vivem num ambiente social desorganizado. No 5º ano têm uma professora; vai para o 6º ano e têm sete. A solução que encontramos foi apostar no protagonismo dessa criança. Ou essa escola volta a fazer sentido para ela ou ela vai abandoná-la. O que seduz esse menino? A robótica, trabalhar com desafios e em equipe, ciência, cinema, rádio, jogos eletrônicos, música. A gente está dotando a escola de várias trilhas que faça sentido para ele.

Esses conteúdos são trabalhados de forma transversal?
Sim. Pela manhã ele assiste à aula de português, matemática, etc. À tarde pode ter atividades com um professor de robótica, em que aprende sobre física, matemática e até a interpretar texto, mas a partir de algo que faz sentido como fazer com que o carrinho robótico ande e ganhe uma competição. Agora fizemos um evento do clube de cinema e rádio, onde o aluno faz roteiros, pautas jornalísti-cas e aí começa a se deparar com as deficiências dele na construção de textos, aprende a fazer pesquisas para entrevistas. O que é mais importante para mim, é que ele trabalha de acordo com o que se diz ser importante no mundo atual: atuar em equipe, com inovação, empreendedorismo, resiliência, enfrentando dificuldades, com criatividade e respeitandor as diferenças. Os resultados têm sido bons. Os alunos foram campeões brasileiros dos campeonatos de robótica em 2015, 2016 e ao passado, eles ficaram em segundo lugar, porque houve uma mudança de regra e eles passa-ram a competir com alunos do ensino médio e perderam para uma escola técnica do Sesi. Das 10 melhores equipes, quatro eram do Recife. Queremos mostrar para eles que educação serve para levá-los aonde eles quiserem ir. Por meio da educação você pode ser o que você quiser. As famílias dos nossos estudantes não chegaram nem na escola técnica quanto mais na universidade. E ele tem que acreditar que podem ser médicos, engenheiros, jornalistas, artistas, desde que acreditem. Agora, uma turma foi para o Chile, por esforço próprio. Os alunos fizeram um projeto, a professora aju-dou, foram para uma feira de conhecimento – que antes era conhecida como feira de ciências. O projeto deles foi escolhido como o melhor e ganharam a credencial para ir para outra feira em Fortaleza, onde receberam a credencial para ir para o Chile e de lá ganharam a credencial para ir para a Abu Dhabi, que é a segunda maior feira de conhecimento do mundo. A gente quer que ou-tros alunos também queiram fazer o mesmo e para isso basta estudar. No segundo semestre va-mos ofertar laboratório de Steam (sigla em inglês para ciência, tecnologia, engenharia artes e matemática). Terá um espaço maker com impressora 3D, cortadora, etc para chamar a atenção do aluno para a importância da ciência e tecnologia para resolver problemas da rua, de casa, da escola. a equipe que vai para Abu Dhabi desenvolveu uma cortina feita com material reciclado que diminui a temperatura em ambientes. Chamou tanto a atenção, que a empresa In Loco quis conhecer e talvez eles venham a prototipar o produto.

Como são preparados para o ensino médio?
Elaboramos um projeto chamado Ondatec, iniciativa inspirada numa ação de duas escolas no Beberibe e no Ibura e que ampliamos para toda a rede. Temos 80 turmas de 9º ano. O Estado de Pernambuco tem o melhor ensino no País segundo o Ideb ( Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), as escolas técnicas têm o melhor Ideb estadual, são de regime integral, oferecem o ensino médio junto com o ensino de qualificação técnica. Perguntamos aos nossos alunos se querem ir para uma escola técnica? A maioria não sabia o que era. Explicamos para eles o que eram, eles se interessaram e nos propomos a ajudá-los a passar no vestibular para entrar na escola técnica. Oferecemos aulas aos sábados de português e matemática, uma plataforma na internet com videoaula e simulados e aula de reforço, com chat, que esclarece dúvidas com professor. Fizemos um material de divulgação com imagem adolescente, lançamento no Compaz, com DJ. Cada aula eles ganhavam um pin e quem participasse das 14 aulas poderiam participar de um sorteio. No meio do ano quem tinha mais acessado a plataforma e respondido mais questões era aluno monitor e ganhava um vale cultura para comprar na livraria Cultura. Dissemos para eles: desculpa, você está conosco há nove anos, não demos a educação que teria que receber, nem a melhor estrutura. Mas agora é com você, se tudo der certo este ano você vai para a melhor escola que o Estado pode oferecer, uma perspectiva gigante na sua vida. O governo cedeu as escolas técnicas do Recife para realizar as aulas, os professores que querem participar ganham uma bolsa. Os alunos têm direito a lanche que adolescente gosta, cachorro quente, hambúrguer, pizza. Resultado: a gente pulou de 91 aprovados em 2016 para 312 em 2017. Foi a rede que mais aprovou na escola técnica. Ano passado tivemos 800 alunos, este ano temos 1.400.

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