Esvaziamento dos cursos presenciais desafia as universidades

*Por Rafael Dantas

O campus universitário está esvaziado. A constatação do professor da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) Pierre Lucena foi mostrada num vídeo curto postado no Twitter que viralizou. As imagens dos corredores do Centro de Ciências Sociais Aplicadas com pouquíssimas pessoas alcançaram 1,6 milhão de views. Por trás da alta repercussão está a preocupação sobre o futuro dessas tradicionais instituições de ensino superior. Antes alvo de desejo dos estudantes, elas estão sendo trocadas pelas formações a distância ou por outros percursos menos presenciais.

A redução da comunidade universitária no espaço físico do campus tem diferentes causas que já foram reveladas por pesquisas nos últimos anos. Um dos fenômenos é o elevado número de alunos que desistem de estudar. De acordo com dados do Instituto Semesp, os cursos superiores presenciais do País registraram em 2021 uma evasão de 27,6%. Esse problema é compartilhado também no ensino a distância, com o preocupante índice de 36,2%.

Além da fuga da formação superior, a migração para o ensino a distância é outro fenômeno com conexão direta ao esvaziamento dos campus. De acordo com os números do último Censo da Educação Superior, do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), do total de novos alunos nos cursos de graduação no País, 62,8% optaram por se matricular no ensino a distância, enquanto 37,2% aderiram à modalidade presencial.

Embora os números indiquem um aumento dessa tendência na pandemia, desde 2015 o gráfico (abaixo) indica o avanço do EAD sobre o ensino presencial. No mesmo período, a soma de novos estudantes no ensino superior segue uma tendência de crescimento também.

Associado à evasão e à migração para as plataformas de EAD, outro fator que acentua o problema foi uma mudança legal, em 2019, durante a gestão de Abraham Weintraub no Ministério da Educação, que permitiu uma carga horária de até 40% remota para os estudantes em cursos presenciais. Na prática, tornou as formações presenciais em híbridas. Um curso que teria cinco dias de aulas, por exemplo, poderia optar por dedicar dois dias ao modelo remoto.

Essa dificuldade de manutenção dos estudantes está além da comparação com o ensino a distância e mesmo dos efeitos da pandemia. “Essa questão pós-pandemia em relação ao ensino superior é diferente do que acontece na educação básica, que está recuperando em sua plenitude a taxa de matrícula. No ensino superior, mesmo antes da pandemia, anunciava-se a necessidade de mudanças importantes por causa do cenário disruptivo que vivemos. Um tempo de desafios mais complexos, que exige novas competências e habilidades na formação dos alunos no ensino superior. Isso se refletia nas altas taxas de abandono. A cada 100 alunos ingressantes no ensino superior, 59 desistiam. O Inep fez essa análise de trajetória dos alunos entre 2011 e 2020, portanto antes da pandemia”, afirmou Mozart Neves Ramos, professor titular da Cátedra Sérgio Henrique Ferreira da USP de Ribeirão Preto e ex-secretário de Educação de Pernambuco.

POUCAS ATIVIDADES PRÁTICAS

Para Pierre Lucena, que também é presidente do Porto Digital, há fatores da dinâmica universitária e da dificuldade de deslocamentos na própria cidade que têm incentivado a escolha dos estudantes para o ensino a distância. “Há diferentes tipos de pessoas no campus. Aqueles que otimizam tudo no seu tempo, estudantes que já estão trabalhando ou têm horários restritos, pensam duas vezes antes de sair de casa para uma aula, principalmente nos cursos mais teóricos. O aluno que mora em Rio Doce (bairro de Olinda) vai gastar três horas de deslocamento para a UFPE em um ônibus para passar três horas em aula. Ele faz o cálculo se não é válido dedicar aquele tempo para leitura. Estamos com um modelo desgastado, unidirecional, do professor falando e do aluno anotando”, critica Lucena.

Especialmente nos cursos teóricos, ele avalia que os custos do deslocamento e de alimentação estão incentivando os estudantes a optarem por se matricular no ensino a distância de universidades nacionais. Mesmo em grandes instituições, com vasto reconhecimento acadêmico, nas modalidades a distância, as mensalidades podem ser mais baratas que a manutenção do aluno presencial numa universidade pública.

Pierre Lucena considera que quando se trata de um curso mais prático, como as formações de saúde, em que o aluno passa um tempo dedicado à prática, ou mesmo no Centro de Informática, que possui uma dinâmica mais intensa nos laboratórios, o engajamento dos estudantes tende a ser maior. Na contramão, as formações mais teóricas, especialmente aquelas que não valorizam a vivência universitária e as atividades práticas, estão sob pressão.

Estudante do quarto período do curso de Sistemas de Informação na UFRPE (Universidade Federal Rural de Pernambuco), Atlas Cipriano, 25 anos, percebe o esvaziamento do curso a cada novo período. Mesmo em uma área muito promissora de oportunidades de crescimento profissional, dos 40 alunos que iniciaram a formação, pouco mais da metade permanece no curso, dois anos após o ingresso no ensino superior.

O fato de ser um curso presencial pesa bastante na taxa de desistência, segundo o relato dos seus colegas. “As aulas presenciais deveriam ser mais dinâmicas. Para mim ainda são muito tradicionais. Você vai e fica sentado na cadeira o dia inteiro. Deveria ter mais participação. A aula é pouco prática ou falha quando se aplica esse método. É muito convencional, em que o aluno fica vendo o professor passar slides”, afirmou Atlas.

Como essa formação tem alta demanda por novos profissionais, o tempo de estudo na universidade acaba tendo uma concorrência do próprio mercado de trabalho. Atlas conta que, além das dificuldades de deslocamento e dos gastos em se manter no curso, muitos estudantes acabam conseguindo alguma colocação nas empresas, que os mergulham numa experiência prática, enquanto estão matriculados, o que dificulta seguir estudando até a formação. “Há aqueles que conseguem estágio e passam a sentir mais dificuldade de acompanhar e frequentar todas as aulas ou perdem a vaga em um estágio por causa do choque de horário com a faculdade”.

DINÂMICA UNIVERSITÁRIA E OS CUSTOS PARA ESTUDAR

Um grande contingente de estudantes matriculados atualmente nas universidades conviveram com pelo menos um período de formação remota, devido à pandemia. Os traumas da crise sanitária e da má experiência de aulas virtuais se somaram a problemas de ordem econômica para afugentar seus colegas de curso. Wekston Brian Lino, 23 anos, estuda licenciatura em história no Campus da UPE (Universidade de Pernambuco), em Nazaré da Mata. Ele está no finalzinho da formação, que começou presencial, migrou para o remoto na pandemia e retornou para a formação em sala de aula. Do total de 57 alunos que ingressaram no curso, 15 devem se formar.

“A universidade tem dificuldades, mas a pandemia levou muita gente a abandonar os cursos. Esse esvaziamento é muito ruim. Tem pouca gente nas salas de aula, aquela rotina com os colegas e grupos está indo embora. Isso dá um desânimo”, revela Brian. Além desse fator mais motivacional, ele aponta que a questão econômica fez elevar a evasão universitária. Ele é morador de Carpina, que tem a oferta do transporte escolar gratuito pela prefeitura. Em razão da proximidade da cidade, menos de 15 quilômetros, ele ainda consegue fazer as refeições em casa, antes de ir para as aulas. Para os estudantes que não têm essa comodidade, o cenário é outro.

“Eu tenho custo zero. A prefeitura concede transporte e saio alimentado de casa. Para quem não tem transporte é complicado. Muitos estudantes disseram que o custo das passagens subiu de R$ 250 por mês para até R$ 700 em algumas linhas. E como moram em municípios mais distantes, ainda têm os gastos com refeição”, destaca.

O pró-reitor de Graduação da UPE, Ernani Martins, afirma que essa dificuldade dos estudantes de financiar o transporte não era uma realidade acentuada antes da pandemia, mas hoje já é uma preocupação na instituição. “Temos políticas de permanência dos estudantes, como o auxílio-alimentação, o auxílio-moradia, o auxílio-equipamento, a bolsa permanência e o auxílio de deslocamento. No pós-pandemia, percebemos muitos alunos com dificuldade financeira de se locomover até a universidade, que não víamos antes. São um conjunto de políticas, que gostaríamos que fossem maiores, e que estamos sempre analisando diante da necessidade dos estudantes”.

Na UPE, de forma geral, o professor afirma que o índice de evasão é em torno de 13%, até menor do que antes da pandemia, quando a taxa era de 15,5%. Além desses dados, Martins revela que outro ponto de atenção é a quantidade de vagas ociosas (aquelas que não são ocupadas no ingresso, no primeiro período do curso). No ano passado, 12,5% das vagas ofertadas para ingresso não foram ocupadas, mesmo com 10 chamadas feitas pela instituição ao longo do ano.

“A evasão e a não procura pelo ensino superior precisam ser olhadas por um conjunto de variáveis complexas. O Brasil avançou muito nas últimas décadas nas políticas públicas de acesso às universidades, mas precisa de políticas públicas de permanência. O perfil do estudante agora no Século 21 é outro, pois o acesso foi popularizado. As políticas de permanências são ainda mais necessárias após a pandemia, com o empobrecimento da sociedade”, alerta o pró-reitor.

O estudante Rodrigo Azevedo, 26 anos, estuda ciência política na UFPE. Ele começou o curso em plena pandemia, com aulas remotas, e depois entrou na modalidade presencial. Ele afirma que entende as comodidades do ensino remoto, mas apesar do conforto de não precisar sair de casa considera que não foi a melhor das experiências.

Além das aulas presenciais, hoje ele também faz estágio na universidade, o que o deixa boa parte do dia no campus. “Entendo que a reabertura do restaurante universitário, que passou anos fechado, faz muita diferença para a permanência de vários alunos, pois tem valores muito atrativos para as refeições. Sem ele, havia esse custo, mas há ainda todo o caos que é vir para a universidade no Recife, principalmente quando chove”.

Além da menor convivência universitária, com o esvaziamento do campus, Rodrigo cita que um prejuízo indireto desse fenômeno do abandono é a segurança nos edifícios. O menor fluxo de pessoas circulando nos ambientes acadêmicos acaba criando um cenário mais propício para delitos ou crimes no amplo ambiente universitário.

URGÊNCIA PELA CONSTRUÇÃO DE NOVOS CAMINHOS

Apesar de o problema ser patente para qualquer pessoa que conhecia os campi no passado, a crise ainda não é tratada nas instituições, segundo Pierre Lucena. “Até agora o País ainda não acordou para o problema. As universidades contam com estruturas enormes, mas se o campus fica vazio, se não for um ecossistema vivo, aí que alunos não querem mesmo ir. Não é fácil fazer o campus ganhar vida de volta. Corremos risco de ir para a irrelevância completa”.

Ao mesmo tempo em que destaca os riscos, Pierre avalia que há boas oportunidades para dinamizar o ambiente universitário. “As pessoas não querem mais ouvir alguém falando três horas. Temos grandes oportunidades de aumentar a quantidade de projetos, promovendo resolução de problemas reais. Mas temos que virar a universidade de cabeça para baixo e não é fácil fazer isso. A universidade é conservadora, é estável, tem uma história longa. Mas temos que rediscuti-la, pois a taxa de evasão é absurdamente alta, mais da metade não termina os cursos. É preciso entender a aspiração de cada um. Daqui a pouco vai sobrar espaço e faltar aluno para tanta estrutura”.

Uma das palavras de ordem no mundo digital é engajamento. Para o estudante Atlas Cipriano, há caminhos possíveis para a universidade atrair um maior interesse e envolvimentos dos estudantes com os cursos e com a vida no campus. “Acredito que a universidade deveria engajar mais os alunos, envolvendo-os em disputas, campeonatos, palestras sobre o mercado de trabalho, como é a vida real onde temos muitos concorrentes e uma exigência cada vez maior por parte das empresas, não só de competências técnicas, mas também comportamentais”.

Wekston Brian, que está perto de se formar e entrar na vida profissional na educação, acredita que a aproximação com a prática em experiências, com maior incentivo ao estágio, seria uma alternativa. “Deveríamos ter um melhoramento da parte prática, uma integração maior com a experiência de estágio e com menos burocracias. Isso nos permite ver a teoria vindo à prática. Há um distanciamento muito grande na universidade tanto de quem está trabalhando ou mesmo dos recém-formados. A academia tem abordagens e métodos que não condizem com a realidade. No estágio lidamos com outras questões que são importantes na formação”.

Além de defender uma maior atenção das universidades para o estágio dos estudantes, Brian defende medidas socioeconômicas para combater a evasão, como oferecer alternativas de moradia no campus para quem vem de municípios mais distantes e mesmo a construção de um restaurante universitário.

Para Rodrigo, que estuda ciências políticas, a universidade deveria apostar em mais projetos de extensão e proporcionar mais bolsas de assistência estudantil para incentivar a dedicação à vivência universitária. “A universidade funciona como microcosmo, mas está dentro do cosmo maior que é a sociedade. Entendo que a universidade tem a obrigação de ter uma atuação com maior impacto na sociedade, com mais projetos de extensão. A revolução tecnológica não tem volta, mas é preciso tornar mais atrativa a experiência de viver fisicamente no campus”.

O pró-reitor de graduação da UPE destaca que um dos fatores que influenciam na ociosidade de algumas vagas é a necessidade dos alunos de estudarem e trabalharem, impedindo-os de acessar cursos integrais. “Outra necessidade contínua das universidades é adequar seus projetos pedagógicos de curso dentro das perspectivas do Século 21, desde como o curso está pensado em atividades práticas e teóricas, bem como a inserção dos estudantes no mercado trabalho ou a perspectiva de atuação em carreira acadêmica. Temos outro perfil socioeconômico e também de interesse dos estudantes”.

Mozart Neves avalia que caso não haja uma transformação efetiva, a universidade perderá relevância no campo da formação das pessoas. “Desde antes da pandemia, o aluno dizia que era preciso mudar o modelo de ensino. Além de logística, o aluno clamava por outro ensino superior. Mas os prédios fechados foram um catalisador para essa mudança. Para mim, as disciplinas que exigem formação prática têm que ser dadas em ambiente universitário. Mas muitas atividades que se faziam necessárias presencialmente, não são mais necessárias. Precisamos pensar em um modelo de ensino e aprendizagem no Século 21. Do ponto de vista da ciência e produção de conhecimento, a universidade continua importante. Mas no campo da formação, ou fazemos uma mudança ou a universidade perde significado”.

Em agosto, o Porto Digital irá promover um evento com diversas instituições acadêmicas para debater a crise do setor e refletir sobre novos caminhos para a universidade brasileira. As soluções parecem ser tão complexas quanto o novo mundo em transformação no qual a academia se propõe a continuar sendo relevante. Um mundo com aceleradas mudanças tecnológicas, grandes desafios econômicos e novas dinâmicas sociais que não correspondem mais ao sistema educacional que foi construído nas últimas décadas.

*Rafael Dantas é repórter da Revista Algomais (rafael@algomais.com | rafaeldantas.jornalista@gmail.com)

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