Parafraseando Thanos, em Vingadores Ultimato, seria INEVITÁVEL não falar sobre a censura da Prefeitura do Rio de Janeiro ao HQ “Vingadores: A Cruzada das Crianças”. O gestor municipal determinou que a obra fosse retirada da Bienal do Livro do Rio de Janeiro em prol do “bem estar das crianças e adolescentes da cidade”. O motivo? Um beijo entre personagens de mesmo sexo. Mas a ação teve efeito contrário: até mesmo quem não conhecia a HQ saiu em busca da obra, com um exemplar chegando a custar, na Internet, a bagatela de R$ 250,00!
Esta não foi a primeira e nem será a última ação de órgãos públicos e da sociedade civil contra os quadrinhos, seus personagens e conteúdos. O cerne da questão aqui não é apenas a cena do beijo, mas a falta de entendimento sobre uma forma de expressão artística que faz parte de nossa cultura e, como tal, também é um espelho da sociedade e de suas transformações. As belas artes também já foram alvo de censura, pois até meados do século 20 se considerava pouco ‘prudente’ ou ‘nobre’ retratar o cotidiano e o cidadão comum nas telas produzidas por renomados pintores. As vanguardas artísticas quebraram com essa premissa, instigando a inserção de elementos prosaicos e populares. O preconceito, meu véi, é algo comum e prejudica a arte, a criatividade e a sociedade. “Free your mind!”
Cada período histórico trouxe junto uma série de temas considerados tabus. Os problemas existiam mas não podiam ser retratados. O que, convenhamos, não era decidido pela sociedade como um todo. Mas por alguns cabras do lado negro da força. Vou então lembrar de alguns personagens cujos criadores foram ousados e corajosos porque, por meio de suas criações, mostraram de maneira lúdica seu posicionamento. Esses seres extrapowers incluíram a representatividade de grupos sociais e minorias políticas, pense numa galera arretada!
Bora lá para o ano de 1941, quando o psicólogo William Moulton Marston ousou criar a primeira personagem feminina com poderes do Pipoco de Zion, ou melhor, Pipoco da ilha de Temiscira, a nossa extrapower Mulher-Maravilha. Coragem da gôta! Entenda que ainda hoje, em pleno século 21, estamos debatendo e lutando pelo empoderamento feminino, estás vendo só como o cara estava à frente de seu tempo?! A Amazona da DC Comics sofreu, visse? A questão era o fato dela ser muito poderosa e, claro, mulher. Acredite, meu véi, ela chegou a perder os poderes e quase desaparecer do mundo dos quadrinhos na década de 1960.
No mundo dos games, a coragem foi da desenvolvedora ‘Core Design’. Em 1996 ela apresenta a personagem principal do jogo “Tomb Raider”, uma protagonista arretada e ‘virada no mói de coento’, Lara Croft. Nessa época só tínhamos os caras exibindo os músculos, empunhando os gatilhos e lançando golpes mortais contra seus inimigos. Como guerreira, Lara Croft mostrou seu valor e se tornou um sucesso. A heroína segue brilhando no cinema e nos games até hoje.
Se formos pensar em representatividade dos negros nas HQ, ai que lascou! Só começou mesmo na Era de Prata dos Quadrinhos, em 1966, com a aparição do Pantera Negra, herói idealizado pelo roteirista Stan Lee e o artista Jack Kirby. Só a título de comparação, Superman foi criado em 1938 e, na sequência, vieram Batman, Flash, Lanterna Verde, Aquaman, Capitão América, todos antes do final da década de 1940.
E como chegamos na Era de Prata, precisamos recordar de um episódio deplorável – pra dizer pouco – no mundo das HQ, pois a intolerância de alguns grupos culminou em centenas de revistas rasgadas ou queimadas, personagens desaparecendo, estúdios de criação encerrando suas atividades, um verdadeiro apocalipse. O mesmo tipo de preconceito que os jogos digitais ainda sofrem nos dias de hoje.
Pois bem, o psiquiatra Fredric Wertham publicou um artigo, na edição de 29 de maio de 1947 do semanário Saturday Review of Literature, acusando os quadrinhos de serem “violentos e carregados de perversões sexuais”. Além disso, ele e outros caras provocaram uma campanha para banir as HQs da face dos EUA e da Terra, literalmente, produzindo estudos com resultados e metodologias questionáveis para provar que as HQs não eram boas para as crianças e adolescentes.
Em 1954, Werthan publica o livro “Seduction of the Innocent” e sua campanha toma proporções gigantescas. O livro levantava acusações contra personagens e foi uma das primeiras obras a dizer que Batman era gay, o que resultou na criação de mais um personagem, o mordomo Alfred, para ajudar na imagem do Bruce Wayne.
Esse foi um duro golpe aos quadrinhos. Como se juntassem Thanos, Darkseid, Satan Goss e Dormammu para devastar não apenas Superman, mas outros heróis, como Mandrake, O Fantasma, e as próprias empresas: DC Comics, Marvel ou qualquer outra. A ação também teve sérias consequências no mercado de quadrinhos independentes aqui no Brasil, pense numa bagaceira!
Muitos personagens tiveram que ter a sua origem alterada para poder se manter ainda vivo, a exemplo da criação de Barry Allen como novo protagonista para o papel de Flash, da DC Comics, em 1956. O herói original era Jay Garrick, que após fumar um cigarro ficou desacordado e terminou inalando gases num laboratório, onde obteve seu poder de supervelocidade. Jay Garrick foi criado em 1940, na Era de Ouro dos Quadrinhos (1938-1958).
Então imaginem se os criativos não mantivessem sua coragem e perseverança inabaláveis, possivelmente não teríamos nossos super heróis, não teríamos o Spiderman, Homem de Ferro, Hulk, Thor, Christopher Reeve como Superman – O filme em 1978. Ou Neo de The Matrix, Vingadores Ultimato nos Cinemas, não teríamos o Coringa ganhando o Leão de Ouro em Veneza, tu imagina isso véi???? Stan Lee criou Os Mutantes, em 1963, justamente para mostrar que todos são iguais e precisamos entender, conviver e amar as diferenças e a diversidade.
A partir disso, a representação de outras minorias políticas surgiu nas HQ, a exemplo do casamento dos mutantes gays Estrela Polar e Kyle Jinadu, a lésbica Lucy in the Sky, também conhecida como Karolina Dean, da HQ ‘Fugitivos’, o primeiro mutante gay em drag, Darnell Wade, também conhecido como Darkveil ou Shade, e o que poucos sabem, o trans e pansexual Loki Laufeyson, ele mesmo, o irmão adotivo de Thor.
Nos games, temos personagens como o coronel bixessual Yevgeny Borisovitch Volgin, de “Metal Gear Solid 3”; o homoxessual Kung Jin, de “Mortal Kombat X”; a lésbica Asellus, de “SaGa Frontier”, e Birdo, primeiro personagem transgênero do título de “Super Mario Bros. 2” da Nintendo, mesmo a empresa não confirmando essa informação. Outra perspectiva no mundo dos games é o jogador decidir a sexualidade de seu personagem, algo que podemos conferir nos títulos de “Mass Effect”, “Fable” e “Dragon Age”.
Graças a Deus, “nós caímos para levantar”, a nuvem passou (nós permanecemos atentos se surgirem outras), e podemos continuar nos vendo representados nos quadrinhos, nos games e no cinema, além de conversar sobre as tramas, os desejos e conflitos internos de nossos super heróis, pois as HQs são inevitáveis para uma sociedade extrapower!
Se não tivéssemos os quadrinhos, não seria possível ver a obra do saudoso cartunista baiano Antônio Cedraz, criador da ‘Turma do Xaxado’, além dos talentos dos pernambucanos Eron Villar, Rafael SAN, Fábio Paiva, Luciano Félix, Thony Silas, Roberta Cirne e tantos outros.
E para comemorar mais essa vitória, vá conferir o Batman 80 – A Exposição, que já iniciou e vai até 15 de dezembro de 2019, no Memorial da América Latina, no Espaço Multiuso (portões 8, 9 e 13), em São Paulo. Além disso, temos a oitava edição da Feira Asgardiana, próximo sábado (16), realizada pela Banca Guararapes, próximo aos Correios, no Bairro de Santo Antônio, Recife, a partir das 10h. Vai ter palestra, muitos quadrinhos e colecionáveis para nós nerds 🙂