“Construir a imagem da empresa brasileira de TI não foi uma tarefa trivial”

José Cláudio, CEO da Procenge, empresa de tecnologia que chega aos 50 anos, fala do pioneirismo de atuar numa época em que depósito bancário era feito em papel e o voto colocado em urna de lona. Ele destaca inovações da companhia como ter desenvolvido a TED, a partir de determinações do Banco Central.

Para quem cresceu com as facilidades de obter um extrato bancário com um simples toque no celular ou votar na urna eletrônica e conhecer o resultado da eleição horas depois, é difícil entender o cotidiano no Brasil antes dessas revoluções tecnológicas. A empresa pernambucana Procenge, que comemora 50 anos, foi testemunha e protagonista dessas transformações. Cláudia Santos conversou com o CEO da Procenge, José Cláudio Oliveira, que falou da trajetória pioneira da companhia desde os primórdios da então chamada “informática” no País. A empresa criou inovações como a TED (transferência eletrônica disponível) para o setor bancário. Bem-humorado e bom de prosa, o empresário conta passagens engraçadas como as ocorridas no tempo em que se fazia depósitos em papel nos bancos. Confira a entrevista.

O que leva o Recife a ter tanto destaque na área de TI?

Porque o Recife é uma cidade de mascate. O forte da sua economia sempre foi a prestação de serviços, o comércio. A TI também fornece serviços. Quando você acessa um App no seu celular, você quer o serviço que é oferecido dali. Outra coisa foi o pioneirismo da UFPE em desenvolver cursos nessa área. Mas quando comecei, não havia cursos no Recife na área de tecnologia da informação.

Eu nem sabia o que era um computador quando estagiei numa revenda de tratores da Caterpillar. Fiquei curioso quando vi no almoxarifado peças da empresa que vinham de São Paulo, com uns cartõezinhos amarrados. Aqui, eles não serviam para nada, o pessoal jogava fora, mas fui informado que aquilo ali era como a fábrica fazia o controle de estoque das peças. Um dia fui mandado para fazer um curso na Caterpillar de São Paulo e lá compreendi o que eram aqueles cartões perfurados: uma forma de inserir e retirar dados do computador. Eles serviam para identificar se havia estoque das peças. Achei aquilo interessante, me intrigou e me instigou. Quando me formei, fiz um concurso na IBM e passei.

O senhor se formou em que área?

Em engenharia mecânica na Escola Politécnica de Pernambuco. Depois, na IBM, fiz um curso de vendas. Você aprendia tudo que tinha para aprender da companhia, mas sempre sob uma ótica de venda. Recebi a incumbência de atender o setor de engenharia, que não tinha uma grande quantidade de empresas, mas havia uma que era interessante, a Astep. Ela se tornou grande referência no Brasil e no exterior por ter usado, pioneiramente, um computador para fazer cálculos nas engenharias ferroviária e rodoviária.

Na Astep descobriram ser possível usar o computador também para fazer a contabilidade da empresa, a folha de pagamento, o controle de tributos e financeiro. E entenderam que se era um serviço que eles estavam demandando, as outras empresas demandavam também. Havia, portanto, um mercado para esse serviço. Nesse meio tempo, fui promovido e transferido da IBM do Recife para a matriz no Rio de Janeiro. Nessa época, o governo implantou a reserva de mercado no setor e não atentou que esse negócio necessitava de conhecimento tecnológico, de gente e de experiência que não tínhamos. Mas, como era no tempo do governo militar, tentaram fazer a coisa na força. A IBM no Brasil ficou numa situação complicada e começaram um plano de transferência das pessoas no País.

Por outro lado, tive notícias de que os diretores da Astep concluíram que as aplicações que haviam desenvolvido – hoje chamadas de backoffice das empresas – não eram o negócio deles, já que atuavam com cálculo de engenharia rodoviária e ferroviária. Então decidiram criar uma outra empresa para atuar nessa área, a Procenge e precisavam de pessoas que conhecessem o mercado da informática, como chamávamos na época. Fui convidado por eles para voltar ao Recife e assumir essa área.

A Procenge tinha um modelo de gestão inovador que incentivava a participação dos colaboradores para opinar no andamento da empresa. A Astep também propôs vender as ações da empresa nascente para os funcionários se tornarem sócios. Nesse momento, em 1980, a Procenge fica independente da Astep e um grupo de 21 funcionários se torna acionista da empresa. É aí eu tenho uma participação mais ativa.

Como foi a trajetória da empresa, que é conhecida por ser pioneira em várias tecnologias?

Além dessa área de backoffice, começamos a trabalhar em projetos tão diferentes como a despoluição do Lago Paranoá até o sistema integrado de transporte do Recife. Nesse grupo de 21 pessoas, havia uma parcela diversificada de consultores, conhecedores de vários tipos de tecnologias e técnicas diferentes, o que fez com que nos aproximássemos desses projetos, tendo o diferencial, para a época, de usar o suporte de um computador.

No Recife, nessa época, todas as linhas de ônibus ligavam um bairro ao Centro. Se você quisesse ir de Casa Amarela para Boa Viagem, tinha que sair de Casa Amarela, ir para o Centro e pegar outro ônibus para ir a Boa Viagem. Se você saísse de Camaragibe para Olinda, teria que ir para o Centro do Recife e, de lá, para Olinda. Desenvolvemos um projeto com uma pesquisa de origem e destino, investigando de onde as pessoas vinham e para onde queriam ir. Em cima disso, montou-se um modelo matemático processado no computador que determinou quais seriam as linhas mais propícias para o Recife ter. Criamo um sistema entre bairros, entre cidades da região metropolitana, racionalizando o transporte público e que praticamente criou a EMTU (Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos) que, até hoje, é a gestora do sistema de transporte subordinada ao Consórcio Metropolitano de Transporte Urbano.

Trabalhamos também com sistemas bancários, em parceria com uma empresa de Blumenau. Desenvolvemos e aperfeiçoamos o sistema de controle de contas correntes porque nessa época não havia o teleprocessamento, era tudo feito no papel. Você fazia um depósito, preenchia um papel, entregava dinheiro ou cheque ao caixa. O caixa recebia, anotava num listão emitido pelo computador que ficava em cima do balcão. À noite, esses papéis de depósito iam todos, no caso do Recife, para a Procenge.

Trabalhávamos para vários bancos. Era tenso. Digitávamos esses papéis em cartão perfurado para controlar as contas correntes e emitíamos um novo listão. No outro dia, logo cedo, ele tinha que estar nas agências antes delas abrirem. Tínhamos vários carros contratados que passavam pela Procenge, pegavam os listões para distribuir nas agências. Às vezes, de manhã cedo, eu ainda estava dormindo e alguns gerentes de banco me ligavam: “Zé Cláudio, o que aconteceu que o listão da minha agência não chegou ainda?” E eu não sabia ainda o que tinha acontecido, às vezes o carro quebrava no meio do caminho, ou “deu pau” na impressora, alguma coisa desse tipo.

Começamos a ter uma intimidade com as questões bancárias e a avançar no que se chamava de teleprocessamento. Desenvolvemos para o Banco Mercantil de Pernambuco o sistema que emitia extrato em tempo real. O banco fazia sessões de demonstração com diretores e clientes para mostrar aquela coisa impressionante que era o extrato ser emitido na hora. No final da década de 90, o Governo Fernando Henrique decidiu botar ordem no sistema bancário brasileiro, que era bagunçadíssimo. Havia, por exemplo, o “cheque bicicleta”, que não podia parar, se parasse ele caía (risos). O banco não tinha caixa para fazer algum negócio, emitia um cheque sem fundo que era mandado para outro banco que mandava para outro banco e o cheque saía rodando de banco a banco. Por que os outros bancos honravam? Porque todos praticavam isso.

Então o Banco Central desenvolveu um termo de referência para criação do Sistema Brasileiro de Pagamentos que previa que nenhuma operação dessa pudesse ser feita sem que tivesse caixa para suportar e o BC teria que ter condições de acompanhar essas operações. Desenvolvemos o sistema para 12 bancos e o símbolo maior dele é a TED, uma transferência eletrônica de fundos que o BC acompanhava. O banco só poderia emiti-la tendo fundos e era feita em tempo real.

Vocês também desenvolveram um sistema eleitoral para computar votos?

Quando começou a redemocratização, houve o retorno da eleição direta para governador, juntamente com a eleição para deputado e senador. Era uma grande aspiração nacional. Foi liberado aos TREs contratarem empresas para fazer totalização dos votos em computador. Quatro empresas no Brasil, nós em Pernambuco, uma na Paraíba, uma outra do Distrito Federal e outra do Paraná, desenvolvemos um sistema para totalizar os mapas de apuração das urnas.

O voto era em papel, chamava-se cédula eleitoral, emitida pela mesa receptora dos votos. O eleitor anotava o voto naquele papel e colocava na urna, que era de lona. Quando acabava a coleta dos votos, a urna era levada para uma central de apuração que, geralmente, ficava nos clubes das cidades. Elas eram abertas e contavam-se os votos. Havia um mapa com os nomes dos candidatos onde se marcavam manualmente os votos que cada um recebia que, depois, eram levados para a central de digitação. Compramos uma bateria de computadores Corisco, fabricados no Recife por Belarmino Alcorforado, e fizemos uma central de digitação no TRE de Alagoas. Recebíamos esses mapas, digitávamos as informações e fechávamos o mapa de votos. O que era fechar? Era verificar se quantidade de eleitores registrados para votar em cada urna correspondia ao número de votantes, e se a soma dos votos registrados por candidatos nas colunas era igual ao da soma das linhas do mapa da urna.

Esse processo não tem nenhuma semelhança com o que é feito com a urna eletrônica hoje. Mas aquela experiência foi importante porque mostrou que o processamento eletrônico poderia ser usado na computação de votos que, até então, era um fato que não acontecia no Brasil.

Também desenvolvemos no final dos anos 90, um sistema, com financiamento do Banco Mundial, para as Secretarias de Educação do Nordeste, que introduziu o automatismo da matrícula. Se um aluno estava matriculado numa escola e passava de ano, o sistema automaticamente fazia com que ele já estivesse matriculado no ano seguinte. Antes, mesmo que o estudante já estudasse naquela escola, a família tinha que ir até lá fazer a matrícula de novo no ano seguinte. Isso era interessante para alguns políticos, como moeda de troca, pois diziam para as famílias que tinham influência para matricular a criança.

Famílias em peso iam para as escolas. Como havia a hipótese de não conseguirem a matrícula na escola que consideravam mais adequada para o filho, mandavam o pai para uma escola, a mãe para outra, o irmão para outra. Era gente demais na rua. Chegava numa certa hora que alguém achava que estava sendo ultrapassado na fila, começava o barulho e a polícia tinha que intervir.

Qual o impacto da reserva de mercado para a Procenge?

Dentro da reserva de mercado, em certo momento, o governo enxergou que havia uma demanda reprimida de milhões de serviços de computação das empresas que não tinham acesso a computadores. Já havia várias empresas como a Procenge, que poderiam reduzir essa demanda reprimida prestando esses serviços. Elas foram autorizadas a importar computador. Importamos um grande computador dos EUA, fazendo um financiamento em dólar que, na época, era mais barato do que financiar no Brasil. Isso nos beneficiou. Mas, no período do final da reserva, o governo promoveu uma máxi desvalorização do cruzeiro, e a gente se viu com uma dor de cabeça da noite para o dia porque a dívida em dólar deu um pipoco. Entre tantas incertezas econômicas vividas neste País (hiperinflação, crises, etc), essa foi uma das mais graves que vivenciamos. Poucos, nascidos a partir do fim do século 20, conseguem compreender o que era manter o curso firme dentro daquele mar revolto. A alta mortalidade das empresas, comum no Brasil e, principalmente, a partir de uma época em que não havia referência para empresas de tecnologia, fazem da nossa longa jornada algo, realmente, de muito valor. Construir a imagem da empresa brasileira de software e de serviços de informática não foi uma tarefa trivial.

Hoje, um dos gargalos do setor é a escassez de capital humano, como vocês enfrentam o problema?

Com a pandemia e o work anywhere, a situação está complicada para a indústria de TI no mundo inteiro. Passamos a ter competição com outros países. Tentamos reagir, acelerando o processo de formação de pessoal. Existem trabalhos feitos pelo Porto Digital ou a Softex, em colaboração com a Prefeitura do Recife, para acelerar a formação de mão de obra. Essa realidade trouxe repercussões também na gestão do espaço imobiliário. Trocamos de prédio, usávamos uma instalação de cinco andares e nos transferimos para outra de um andar. Agora, as pessoas não trabalham todas ao mesmo tempo, podem fazer sua programação para trabalho híbrido.

Elas podem trabalhar em regime de coworking, os grupos que precisam ter ação conjunta vão para lá, trabalham juntos, existem salas para reunião, e há um lounge onde podem se encontrar, tomar café, fazer refeição em conjunto. Isso se tornou muito mais importante porque antes todos trabalhavam no mesmo horário, no mesmo lugar e se viam a toda hora. A Procenge tem 130 empregados. Desses, 30 não estão no Recife, mas espalhados pelo País afora. O número de mulheres trabalhando na Procenge é menor do que o de homens, porém mais de 60% do corpo gerencial é feminino. E não fizemos nenhum programa de facilitação para as mulheres. Elas disputaram as posições em igualdade de condições com os homens e ganharam.

Para quais setores que a Procenge trabalha hoje?

O nosso carro-chefe é o ERP Pirâmide, sistema voltado para backoffice, que traz a diferença por trabalhar em todos os ramos empresariais, indústria, comércio, agronegócio. Na área de tecnologia, temos a confiança da maioria das empresas do Porto Digital que contratam o ERP, como o C.E.S.A.R., o próprio Porto Digital, o Softex, a CMTech, a Neurotech. São empresas que nos dão o aval de usar nosso sistema, pois entendem de TI.

Como está o desempenho da Procenge?

Na pandemia foi muito ruim, tivemos muitos clientes afetados, muitos pedidos de redução de valores, de contratos. Também houve uma retração de compras. Hoje conseguimos nos estabilizar e voltar ao nível de equilíbrio que tínhamos antes da pandemia. Temos ganho operacional na ordem de 20%. O faturamento também está estabilizado.

Estamos fazendo uma evolução do ERP, tanto do ponto de vista da base tecnológica para ele se tornar mais flexível, usar recurso em nuvem, como também do ponto de vista funcional. Hoje existe a linguagem low code, no code, que não precisa de código para você desenvolver alguma coisa, e é muito propício para o desenvolvimento de módulos ligados ao ERP relacionados com a atividade fim do cliente. Por exemplo, desenvolvemos com essa linguagem um sistema de controle de exportação de frutas para uma empresa de Petrolina. Também desenvolvemos um sistema para uma locadora de equipamentos que permite fazer uma programação da disponibilidade desses equipamentos e minimizar o ócio deles. Estamos avançando agora com o Pirâmide 360. É um ERP que está além dos tradicionais e será concluído no primeiro semestre de 2023.

Quais os planos para a Procenge?

Hoje inovamos pelo regime de inovação aberta com terceiros. O projeto é nos aproximarmos das startups, já temos integração com fintechs. Estamos implantando um programa nacional de parcerias ambicioso que no momento está concentrado no Nordeste (da Bahia ao Ceará), mas que deve se estender por todo o País. Esse é o caminho que está dando o direcionamento mercadológico da Procenge para os próximos 50 anos.

Mas no futuro poderemos viver uma realidade diferente. Se eu tivesse dito há 50 anos onde estaríamos hoje, não passaria nem perto do que vivemos agora. Mas como disse Silvio Meira: “o futuro vem do futuro”. Temos que estar sempre atentos ao futuro para trazê-lo para o agora, para transformar o futuro em presente, e o passado não é nada mais do que o presente que já passou. Estamos desenvolvendo o livro Procenge – 50 anos de história e de futuro, cuja ideia é fazer uma análise comparativa do que a gente passou, o que isso que a gente passou significa para o futuro e nos qualifica para atender o futuro.

O livro será “figital” (mais uma vez voltando a Sílvio Meira), no formato físico e em e-book, mas será um e-book que continuará agregando novos depoimentos, é um livro aberto. Não queremos fazer uma biografia da Procenge e botar na estante.

*Entrevista Publicada na edição 200.3 da Algomais

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