José Graziano da Silva: “Um de cada três nordestinos está passando fome”

No ano em que o livro Geografia da Fome completa 75 anos, a insegurança alimentar disparou no País. A crise econômica que se arrasta há anos e a pandemia colocaram (ou devolveram) alguns milhões de brasileiros a não ter sequer o alimento na mesa. Outros tiveram sua alimentação comprometida em quantidade ou qualidade pela falta de recursos para adquiri-los. Para analisar o cenário em que chegamos, o jornalista Rafael Dantas entrevistou José Graziano da Silva, ex-Ministro da Segurança Alimentar e Combate à Fome (entre 2003 e 2004) e ex-diretor-geral da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) entre 2012 e 2019. Referência global no tema, o doutor em Ciência Econômica foi responsável por comandar a implementação do programa Fome Zero no início do Governo Lula.

O quanto a pandemia agravou a situação da fome no País? E qual o cenário podemos esperar para 2021?

A pandemia agravou muito a situação da fome no país. Primeiro aumentou muito o número de pessoas em situação de insegurança alimentar, diminuindo, portanto, as pessoas em segurança alimentar, as pessoas que se alimentavam bem. Os últimos dados disponíveis antes da pandemia, da Pesquisa do Orçamento Familiar (POF) de 2018, mostravam que mais de 63% da população estava em segurança alimentar, ou seja, dois de cada três brasileiros. Isso cai em 2020, segundo a pesquisa da Rede PENSSAM, para menos de 45%, ou seja, praticamente um de cada dois brasileiros não tem segurança alimentar garantida. E em termos de fome, os indicadores mais duros, mostram a insegurança alimentar grave aumentou de 5,8% em 2018 para 9%. Praticamente quase dobra. O número de insegurança alimentar moderada passa de 10% pra 11,5%. Somados os dados da insegurança alimentar moderada e mais grave passa de 16,2% em 2018 para 20,5% em 2020. Isso em dezembro de 2020, no fim do Auxílio Emergencial, ou seja, um de cada cinco brasileiros passava fome.

Há algum olhar mais específico para a situação da fome Nordeste, que sempre foi a região mais vulnerável e alvo principal dos programas sociais do País?

A situação do Nordeste é ainda mais grave. O Nordeste em 2018 tinha 52% da população em segurança alimentar. Praticamente um de cada os nordestinos em segurança alimentar. Isso cai para 28% em 2020. É uma queda muito forte. O número de pessoas com fome (insegurança grave) passa de 8% para 14%. Somando a alimentar grave e a moderada, nós passamos de 23% em 2018 para 31% em 2020. É um número assustador. Um de cada três nordestinos está passando fome. Só para você comparar, em uma pesquisa feita em 2018 na Venezuela, que é um país sempre apontado como tendo muita fome na América Latina, o levantamento dava 8%, que é o número do Nordeste em 2018, 8% em situação alimentar grave. Então, o Nordeste hoje é um espelho do que se passa em termos de segurança alimentar na Venezuela.

Quais as principais estratégias para combater a fome no curto prazo, neste momento de intensa crise, e no médio/longo prazo?

A estratégia de combater a fome hoje, no meio dessa pandemia, passa por uma transferência de renda para o mais pobre. Fortalecer o Bolsa Família e o Auxílio Emergencial, mas um auxílio emergencial de um valor muito superior. Hoje a estimativa do PROCON é de que os itens da cesta básica, que inclui alimentação e higiene, chegam perto de mil reais. Um auxílio emergencial de R$ 250 e até mesmo R$ 350 não vai livrar a situação dos mais necessitados. O auxílio emergencial precisa ser entendido como um tipo de seguro para as pessoas poderem ficar em casa sem passar fome. Senão fica aquela situação: Se ficar o bicho pega, se correr o bicho come. Se ficar passa fome, se sair de casa o Covid mata. Não pode. A médio e longo prazo não há dúvida de que temos que restabelecer as políticas de segurança alimentar e nutricional como política de Estado e não como política de governo. Não pode um governo entrar e acabar com o PAA (Programa de Aquisição Alimentar), acabar com a merenda escolar, com o Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional). Essas são políticas permanentes de Estado, não podem ser modificadas ao sabor do interesse desse ou daquele governo.

Em todas as palestras que tenho visto, o Sr. tem dito que se reeditasse o Fome Zero hoje, incluiria também o Gordo Zero, em referência à má nutrição das populações com situação de insegurança alimentar leve. É possível fazer isso diante do custo dos alimentos mais saudáveis? 

De fato, se tivéssemos que reeditar um programa tipo Fome Zero, que me parece ser a saída para enfrentar não só a fome nesse momento. Nós precisamos ter uma mobilização social. Sem dúvida quem acaba com a fome não é um governo, é a sociedade. Então, mais do que nunca, nós precisamos de uma mobilização social e não apenas uma campanha temporária, como nós estamos vendo acontecer nesse momento agudo da pandemia. Uma mobilização permanente da sociedade para implantar políticas de segurança alimentar. Mas se tivesse que reeditar, sem dúvida, um componente importante era combater a obesidade. O Brasil tem hoje um problema de subnutrição grave, com a fome, mas tem um problema de má alimentação que é muito maior. A insegurança alimentar leve atinge quase 24 milhões de pessoas no Nordeste, por exemplo. Essas pessoas comem mal, são potenciais obesos. Essas pessoas não comem produtos frescos, frutas, verduras, legumes, ovos, leite, carne. Essas pessoas com o tempo, com o consumo de muito açúcar, muita farinha, tendem ao sobrepeso e senão a obesidade. E a obesidade tem um fator agravante quando atinge crianças e mulheres. Temos que cuidar disso sobre o risco de comprometer uma geração futura de brasileiros.

Como o incentivo à Agricultura Familiar e à agroecologia poderiam ser parte da solução deste problema?

O incentivo a agricultura familiar é a saída pra baratear o custo da alimentação saudável e tornar esses alimentos saudáveis mais acessíveis localmente. Hoje quando a gente fala em incentivo a agricultura familiar, a agroecologia é parte dessa proposta, não há como conseguir alimentos saudáveis se nós continuarmos da linha da intensificação nos moldes da revolução verde, usando cada vez mais químicos e maquinário.

O livro Geografia da Fome, do pernambucano Josué de Castro, está completando 75 anos. Como o pensamento de Josué de Castro pode nos ajudar neste momento?

Josué de Castro é o grande inspirador de todo programa de combate a fome no Brasil. Ele deu duas contribuições que eu reputo fundamentais em qualquer época, ainda mais agora nesse momento. Primeiro ele mostrou que a fome não não tinha causas naturais. A fome no Nordeste não era porque tinha seca. A fome era um problema social, um problema de baixos salários pagos aos trabalhadores da Zona da Mata e de baixo nível de renda dos habitantes do sertão. Josué de Castro deixou isso muito claro. Como agora nós estamos vendo claramente que a fome não é uma consequência da pandemia, não é porque tem o vírus que aumentou a fome. É porque aumentou o desemprego, é que diminuiu a renda das famílias, aumentou o endividamento. Então, não são causas naturais. A outra contribuição de Josué de Castro foi mostrar que a fome era maior na Zona da Mata do que no Sertão. Quer dizer, na zona rica de Pernambuco a fome era maior. Porque, como ele dizia, os trabalhadores da Zona Canavieira não conseguiam nem tomar garapa. Embora de má qualidade era uma alimentação que poderia mantê-los energeticamente, uma alimentação energética mínima. Josué de Castro mostrou que isso tinha a ver com o viés exportador da economia açucareira do Nordeste já naquela época. E é isso que nós estamos vendo hoje, grande parte da fome no Brasil é agravada pelo viés exportador da nossa agropecuária. Nós estamos preocupados em exportar commodities para o mundo todo, para China, para criar animais na Europa e deixando de atender a mesa do brasileiro. Nós vimos isso recentemente agora no preço do arroz e do feijão que dispararam em função das exportações. Isso sem ter políticas de formação de estoques no Brasil. Então é um viés exportador e a falta de políticas compensatórias, como a política de formação de estoques reguladores no Brasil. Acho que a contribuição de Josué de Castro, nesse sentido, é inestimável. Não é que haja uma competição entre produção para exportação e para o mercado interno. Ambas as coisas podem ser perfeitamente compatíveis desde que haja políticas públicas para isso. A questão é que hoje, como no tempo de Josué de Castro, nós só temos política de exportação. Temos isenção de tributos para exportação, a Lei Kandir, temos isenção de uma série de insumos importados, que são usados basicamente na produção de produtos exportação, de commodities, e não temos uma política de apoio aos produtos do mercado interno. Entre elas, não temos uma política de estoques reguladores. A FAO recomenda para os produtos básicos no mínimo três meses de estoques. Se nós tivéssemos três meses de estoque de arroz e feijão não teria havido a disparada de preços que nós vimos acontecer. Então, não é um problema de oposição entre mercado interno e mercado externo, é um problema de falta de regulação pública do setor exportador e falta de políticas de apoio a agricultura familiar.
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*Por Rafael Dantas, jornalista e repórter da Revista Algomais. Especialista em Gestão Pública e Mestre em Extenção Rural e Desenvolvimento Local (rafael@algomais.com | rafaeldantas.jornalista@gmail.com)

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Indicamos também sobre José Graziano da Silva a recente palestra virtual sobre o cenário atual de enfrentamento da fome na aula magna do Instituto de Economica da Unicamp

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