Arruando pelo Recife

Arruando pelo Recife

Leonardo Dantas Silva

No tempo do Inquisidor (Parte 1)

No século 16, a Vila de Marim, como era chamada nos seus primeiros anos a Vila de Olinda, encontrava-se entre os mais importantes aglomerados urbanos da América Portuguesa. Com seu belo casario branco em pedra e cal, situada sobre cinco colinas (montes moderados no dizer de Loreto Couto), com as torres de suas igrejas e mirantes de seus sobrados sobressaindo-se do arvoredo, era um verdadeiro espetáculo aos olhos do mais frio observador.


No dizer de Rodolfo Garcia, “um deslumbramento, uma miragem encantadora que jamais se apagará da memória de quem um dia logrou a ventura de presenciá-la – a vista do mar”.
Até mesmo um circunspecto naturalista alemão, o professor Konrad Guenther, que por uma temporada foi hóspede do Mosteiro de São Bento, descrevia o mar de Olinda semelhante a uma pedra preciosa multifacetada. “O mar muda de colorido conforme os reflexos da luz: uma orla violeta debrua o horizonte, listas da mesma cor riscam o espelho verde, aqui cintilações rubras, ali azuis – parece que todas as cores do arco-íris se derramam sobre o horizonte”.
Teria sido essa primeira imagem que o visitador Heitor Furtado de Mendoça (sic) vislumbrou de Pernambuco, quando de sua chegada em setembro de 1593. Mas o “olhar” devassador da Inquisição não estaria tão somente saciado com as cores do arco-íris, que tomavam de encanto os horizontes de Olinda, mas procurava por recantos mais obscuros da alma humana, o lusco-fusco do comportamento das pessoas, a intimidade das alcovas, o silêncio dos lares, os pecados cometidos nas mais recônditas camarinhas.
Assim surgem do interior dos lares daquela pacata sociedade elementos reveladores da origem das imensas proles de filhos, legítimos e naturais, gerados nas alcovas ou mesmo nas senzalas, muitos deles a céu aberto, naquele ambiente luxuriante, povoado por mulheres brancas, negras seminuas e índias nos trajes que vieram ao mundo. Um paraíso onde não existia a noção do fruto proibido, ou, como justificava Caspar van Baerle (1647): ltra aequimocialem no pecari. Melhor traduzindo: Não existe pecado abaixo do Equador.
Assim era o comum em todos os lares, e com mais intensidade, nas famílias de maior destaque, o pecado da carne. A poligamia tomava conta da sociedade, somente o cunhado do primeiro donatário, Jerônimo de Albuquerque, falecido em 1593, aparece nos autos das Denunciações como pai de 26 filhos, dos quais apenas 11 eram originários de sua mulher legítima.
O exemplo do Adão Pernambucano, como veio a ser tornar conhecido, é seguido por outros povoadores do seu tempo, que assim contribuíram para o crescente número de mamelucos, originários de uniões com as índias da terra, e até mulatos filhos de suas escravas. Nas Denunciações aparecem os filhos naturais de D. Filipe Moura, que fora governador da capitania (1593-1595), Rodrigo Lins e o próprio Jorge de Albuquerque Coelho, terceiro donatário da capitania, aparece como pai de Manuel d’ Oliveira.
Em depoimento prestado por Manuel Álvares, um criado da casa da viúva de Duarte Coelho, D. Brites Albuquerque, aparece ele como sendo um “mameluco que dizem ser filho bastardo de Jorge de Albuquerque com uma índia mestiça deste Brasil” (15.11.1593).
No dizer de Francis Dutra a indiscriminada atividade sexual dos portugueses com índias nativas e até com escravas da África, já denunciada nas cartas jesuíticas, permitiu concluir que, desde o filho mais novo do primeiro donatário ao mais insignificante degredado, os portugueses foram pais de gerações de mestiços.
Preocupou-se também o primeiro inquisidor com a constatação de ritos e práticas judaicas, que viriam denunciar a presença de judeus em nossa sociedade colonial. Dos vários depoimentos surgem os nomes de Branca Dias e de seu marido Diogo Fernandes, proprietários do engenho Camaragibe, ambos falecidos antes da Visitação. Tinham eles em suas terras uma sinagoga familiar, na qual festejavam as principais festas do calendário judaico, como o Iom Kipur e o Roshashaná, ou seja, o Dia do Perdão e o Ano Novo Judaico.
Era Branca Dias professora de meninas, a quem ensinava ler, bordar e outros ofícios do lar, sendo elas, já adultas, as suas principais denunciantes.

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