O avanço da economia circular: sem resíduos e sem desperdício

*Por Rafael Dantas

Você já imaginou o dia em que o planeta já não terá mais petróleo, madeira ou mesmo água para atender as demandas globais? A velocidade e o modo tradicional de produção de mercadorias e bens caminha para esse fim, em razão do modelo que extrai da natureza mais do que ela consegue renovar. Para inverter essa lógica linear (de extrair, produzir e descartar), tem crescido no mundo, no País e em Pernambuco a economia circular. A partir de princípios sustentáveis, ela propõe o reúso e a reciclagem, além da própria redução do consumo de alguns itens que podem ser abandonados. Além dos benefícios ambientais, muitas empresas estão enxergando também o valor comercial de entrar nessa nova tendência.

Quando um copo de vidro de um extrato de tomate é reaproveitado na sua residência, a economia circular ganha um ponto. Quando uma latinha é reciclada e volta à linha de produção para a mesma ou outras finalidades, outra vitória desse conceito. Práticas domésticas simples, como a compra de refil, evitando o consumo de novas embalagens plásticas, ou a opção por uma garrafa retornável de uma bebida, integram também essa cadeia que se propõe a ampliar o tempo de vida das mercadorias ou garantir o seu reaproveitamento por meio da reciclagem.

Experiências exitosas de economia circular, que combinam o respeito aos recursos naturais e atividades sustentáveis economica e socialmente, têm brotado em vários setores. Seja na cadeia automotiva, na área de moda ou de embalagens, há projetos de sucesso de grandes empresas ou mesmo negócios que nasceram das sementes desse conceito.

Entre as inúmeras ações de sustentabilidade da Stellantis, âncora do polo automotivo de Goiana, o trabalho em parceria com a Roda tem promovido o reaproveitamento de resíduos da linha de produção. Airbags reprovados nos testes, ao invés de irem para o lixo, viram bolsas ecológicas. Os refugos do corte dos “couros” sintéticos que cobrem os bancos dos veículos e mesmo os fardamentos que integram os equipamentos de proteção individual dos funcionários também ganham novos usos, a partir da manufatura de mulheres capacitadas para atuar com upcycling (reaproveitamento) e são vendidas com um valor agregado maior, devido a seu processo de responsabilidade socioambiental.

“Recebemos os resíduos, os que são transformados e colocamos no mercado. Pessoas físicas e também algumas empresas compram nossos produtos em sites ou na loja física. São materiais bastante resistentes que usamos em mochilas, bolsas, necessaire, proteção de laptops. Já fizemos sandálias. Funcionamos em parceria com a indústria, procuramos entender os resíduos que eles têm para encontrar a destinação mais ecológica”, afirmou Mariana Amazonas, co-fundadora da Roda.

Diante da tendência de crescimento das práticas da economia circular no mundo, Mariana acredita que esse movimento deve alcançar outros setores e deixar de ser algo apenas do futuro. “A economia circular surge como uma resposta à crise climática. Neste momento esse conceito vive um boom em todas as cadeiras produtivas, como uma resposta inteligente, viável economicamente e ao mesmo tempo faz muito sentido para uma lógica de produção. Às vezes, inclusive, entrega mais valor econômico para a empresa que é ambientalmente mais responsável”, afirma Mariana.

REFERÊNCIA NA MODA E NA SUSTENTABILIDADE

Caminhando no trajeto oposto da indústria rápida da moda, que descarta as peças da coleção anterior, a empresa pernambucana Refazenda tem uma trajetória longa e já reconhecida mundialmente na economia circular, desde a concepção dos seus produtos até os serviços oferecidos pela marca.

A Refazenda oferta, por exemplo, peças dupla face que podem ser usadas em momentos diferentes. Algumas opções são de multiuso, como uma saia que vira vestido tomara-que-caia, ou um macacão que vira calça. A experiência de produção da empresa também tem um cuidado especial na escolha dos materiais, com matérias-primas de origem natural e certificadas. Com esses materiais, a marca consegue fazer o upcycling, desenvolvendo algum produto a partir daquele tecido, por menor que seja o tamanho, sem destruí-lo ou sem a necessidade de transformá-lo num processo tradicional de reciclagem.

“A economia circular é o paradigma em que não existe um começo/meio/fim ou pelo menos ele não é tão rápido, principalmente com foco nos produtos. Tem uma extensão do tempo de vida útil, com soluções e design de criatividade que fazem com que os produtos não sejam tão efêmeros. Eles passam a ter, no mínimo, um segundo e terceiro uso a partir da própria matéria-prima. Essa é a principal mudança de paradigma, pensar soluções de design e criatividade em produtos que tenham multifuncionalidades e não sejam só fashionistas”, afirma Marcos Queiroz, diretor da Refazenda.

Ele conta que o conceito de ter lixo zero, aproveitando todas as matérias-primas adquiridas vem desde a fundação da empresa. “Essa noção começou há 32 anos, quando Magna Coeli (fundadora) já era do ramo de confecções e estava pensando em criar a Refazenda. Ela queria fazer algo que não gerasse lixo. Ou seja, todo tecido novo que fosse comprado para ser cortado e confeccionado deixaria lixo zero. Ela começou prototipando com sobras de matéria-prima de outras confecções e logo conseguiu chegar a essa fórmula por conta própria”. Os retalhos dos tecidos, então, se tornaram bolsos, golas, punho, acabamentos internos ou mesmo acessórios das peças.

Nos esforços da empresa de garantir maior vida útil dessas matérias-primas, a marca desenvolveu soluções de pós-consumo, com o Realce. Trata-se de um programa de upcycling para peças já usadas, em que a empresa cria um novo produto a partir do já existente, faz pequenas modificações ou até produz peças novas a partir da matéria-prima já existente. “O foco do Realce é no pós-consumo, naquelas peças que eventualmente iriam ficar abandonadas no armário, ou iriam para aterros sanitários, brechós e etc”.

Tanto a Roda como a Refazenda têm no seu DNA a formação de comunidades, principalmente de mulheres, para atuar nesse segmento de negócios sustentáveis.

CASE GLOBAL DA RECICLAGEM DAS LATINHAS

Aproximadamente 99% de todas as latinhas de alumínio do Brasil em circulação voltam para a reciclagem e seguem para fabricação de novas latas ou até de produtos das cadeias produtivas de celulares ou mesmo de automóveis. Em 2021, último ano com dados fechados da Abralatas (Associação Brasileira de Fabricantes de Latas de Alumínio), o País bateu o recorde com 415,5 mil toneladas de latas recicladas ou 33 bilhões de unidades.

Líder mundial da produção de embalagens de bebidas, a Ball, tem operação em Pernambuco há décadas, com uma fábrica em Suape, e está atuando como uma das principais parceiras do projeto LAB Noronha Pelo Planeta, de Fernando de Noronha. A produção atual de latinhas da empresa conta com 75% de conteúdo reciclado. A fábrica no solo pernambucano, inclusive, conta com duas plantas (uma produz o corpo da tala e a outra a tampa) para atender o consumo do Nordeste.

“A lata é nobre, tem valor. Não geramos lixo, geramos renda. Hoje temos mais de 40 centrais de reciclagem no País que compram dos médios e grandes negócios, que fazem parcerias com cooperativas e com a população em geral. No Brasil quem faz reciclagem de lata é o povo. É todo mundo”, afirma Estevão Braga, diretor de sustentabilidade da Ball.

Essa participação popular, associada ao trabalho de várias empresas e organizações, é um dos segredos do sucesso da economia circular no segmento. Mesmo alguns países ricos, como nos Estados Unidos, ou com indicadores de desenvolvimento humano maior, como o Chile, possuem taxas muito menores de reaproveitamento por não terem essa cultura de reciclagem.

REFERÊNCIA EM FERNANDO DE NORONHA

Uma das novidades da economia circular em Pernambuco é a construção do Lab Noronha Pelo Planeta, em Fernando de Noronha. Fruto de investimentos na ordem de R$ 40 milhões. A estrutura abriga um palco Multiarte (teatro, dança, música, cinema, palestras, aulas), um LabKids (educação ambiental), ecoloja, auditório, central de reciclagem, usina de bioenergia, usina solar, um viveiro de mudas e uma base de hospedagem para pesquisadores e parceiros.

A proposta do empreendimento é formular novas cadeias econômicas que possibilitem gerar negócios, criar empregos verdes, regenerar ecossistemas, reduzir desigualdades e replicar esses experimentos em larga escala. A expectativa é que entre junho e julho o espaço seja inaugurado. De acordo com Sérgio Xavier, desenvolvedor do LAB Noronha Pelo Planeta, após a entrada em operação, no segundo semestre, está prevista a implantação de sistema de economia circular com aplicativo de logística reversa e coleta de latinhas de alumínio, utilizando veículos elétricos e ecobags retornáveis. Outro projeto é o viveiro de árvores nativas, com um programa de reflorestamento, retirando espécies invasoras e produzindo bioenergia com resíduos orgânicos. O projeto conta ainda com a produção de energia solar com armazenadores e abastecimento de veículos elétricos.

“O sucesso de sistemas de economia circular depende do envolvimento de múltiplos setores e da percepção clara sobre os benefícios gerados. O passo inicial é despertar para os ganhos em todos os elos da cadeia econômica circular, como já ocorre hoje na circularidade da latinha de alumínio que, entre outros aspectos, promove melhoria de renda para catadores de materiais recicláveis”, destacou Sérgio Xavier.

O diretor destaca que o sistema em implantação traz benefícios para todos os integrantes do processo circular. “Fabricantes, comerciantes, consumidores, profissionais da reciclagem e órgãos públicos terão redução de custos e outras diversas vantagens ao adotar a circularidade na produção, venda e consumo. Pelas características especiais de Noronha, as expectativas são muito positivas em todos os eixos em desenvolvimento: reciclagem, energia renovável, conservação hídrica, ecoeficiência, educação ambiental, negócios regenerativos etc”

A Ball, que é uma das grandes parceiras do projeto, será responsável por recolher todas as latas da ilha, reduzindo os gastos públicos com a coleta e a destinação desse resíduo sólido. “Noronha tem um desafio grande. É uma ilha, com limitação geográfica e que gasta muitos recursos por mês com gestão de resíduos sólidos. Assumimos em Fernando de Noronha o compromisso para implantar o projeto para recolher todas as latas de alumínio de forma privada na ilha e daremos a destinação correta desse material, garantindo que ele se torne uma nova lata. Dessa concepção inicial surgiu a ideia de construir o laboratório de economia circular”, afirmou Estevão Braga.

Antes mesmo da operação do laboratório, a empresa chegou em Fernando de Noronha com outros projetos, como o incentivo à leitura, implantando bibliotecas comunitárias, e investiu na reforma do laboratório de ciências da escola pública da ilha, entre outras iniciativas, como a capacitação de artesanato para mulheres e de fotografia para jovens. Estevão Braga destacou que há uma boa expectativa dentro da unidade da empresa de Suape, que receberá os materiais reciclados do arquipélago.

“O LAB Noronha Pelo Planeta é o espaço onde queremos estimular que turistas e ilhéus reconheçam e conheçam a importância que a economia circular tem no seu dia a dia. Hoje só temos essa situação de que o arquipélago gasta muito dinheiro com gestão de resíduos porque as pessoas geram muito resíduo. Queremos estimular que elas não gerem e, no caso dos turistas, até quando forem embora”, reforçou Estevão Braga.

DESAFIOS E EDUCAÇÃO PARA O CONSUMO

Apesar dos avanços da economia circular em Pernambuco, no Brasil e no mundo, a professora Laurileide Silva, do Departamento de Ciências do Consumo da Universidade Federal Rural de Pernambuco, afirma que a aplicação do conceito ainda está engatinhando frente ao seu potencial. “Muitos supermercados ainda utilizam sacolas plásticas. Alguns já estão disponibilizando as sacolas reutilizáveis, mesmo repassando o custo aos clientes. O próprio termo da economia circular é relativamente recente, mas despertou a preocupação que a indústria e o comércio devem ter com o processo de produção, consumo e descarte dos produtos de forma geral”, destacou Laurileide.

A pesquisadora considera que um dos setores que gera muito resíduo e que precisa acelerar a mudança de suas práticas é o de eletrônicos. “Nesse setor, a produção é pensada anualmente. O celular tem que ser o atual, de cada ano, mas não é pensado como será reutilizado, reciclado. Os telefones celulares, computadores, carregadores e eletrônicos de forma geral têm a obsolescência programada. É uma programação para vender mais, mas não para entrar num ciclo de produção e consumo novamente”, criticou.

A professora da UFRPE avalia que a conscientização da população sobre a economia circular é o aspecto fundamental para a transição da economia linear. “É preciso haver um processo de informação e conhecimento por parte da população, isso está muito incipiente também. O tema do consumo nas escolas não é trabalhado de forma lúdica, interativa. O nosso grande desafio é tirar a economia circular da teoria e trazer para cotidiano da população de forma geral, isso vem pela informação e conhecimento”, destacou a docente.

Em outras palavras, a exemplo da experiência das latinhas, é preciso trazer a sociedade para assumir um papel de protagonismo em meio a esse processo econômico e ambiental em transição.

*Rafael Dantas é repórter da Revista Algomais, mestre em Extensão Rural e Desenvolvimento Local (UFRPE) e doutorando em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (rafaeldantas.jornalista@gmail.com | rafael@algomais.com). No site da Algomais, ele ainda assina as colunas Gente & Negócios e Pernambuco Antigamente

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