“Sou nordestino. Falo ‘Ólinda’ e não ‘Ôlinda'”

Ao comemorar 40 anos como repórter da Globo, Francisco José, 71 anos, coleciona feitos como ter descoberto o Escândalo da Mandioca, ter realizado reportagens com os maiores índices de audiência no Globo Repórter e ficar 40 dias vivendo como índio numa aldeia. Nesta entrevista ele conta sua trajetória como jornalista, que teve momentos hilários como o início do seu trabalho na TV.

Você nasceu no Crato e quando veio para o Recife?
Meu pai morreu quando eu tinha 7 anos de idade . Ele era um coronelzão do Sertão, era o Chico de Brito, tinha muitos filhos. Há muita história de cordel sobre ele. Minha mãe se casou com um senhor daqui do Recife três anos depois e me mudei para cá e fiquei até hoje. Cheguei aqui com 11 anos e estou com 71.

Então sua infância foi mais no Recife?
Foi. Primeiro viemos morar no bairro das Graças, e depois meu pai tinha uma empresa de vidros em Areias, onde moramos um tempo por lá, e o restante do tempo em Boa Viagem. Na época da minha adolescência eu nadava no mar de Boa Viagem até perder de vista, sem problema com tubarão (risos).

Como foi o início da sua carreira profissional?
Não tinha o curso de jornalismo quando entrei no jornal. Entrei no jornal por acaso, aos 20 anos, através de Aramis Trindade que era o editor de esporte do vespertino da empresa Jornal do Commercio, que era o Diário da Noite, e tinha um caderno esportivo. Eu era fanático por futebol até hoje acompanho bem o futebol, gosto de assistir aos jogos do Barcelona, dos times bons. Eu anotava tudo no caderno. Eu anotava as estatísticas do campeonato. Percebi que no jornal tinha 32 erros e fiz uma carta ao jornal, dizendo que aquilo era um absurdo, estavam enganando o leitor. Havia uma resenha esportiva da rádio Jornal do Commercio e Aramis convidou o leitor que havia corrigido a estatística e fiquei fazendo a estatística para eles. Um dia faltou um repórter e eu comecei a fazer reportagens. Com seis meses ganhei um concurso para ir para a Copa do Mundo e com mais seis meses ele saiu para ficar apenas no escritório de advocacia dele e me indicou para substituí-lo como editor de esportes. Por causa da crise o vespertino fechou e eu passei para o Jornal do Commercio, onde meu professor era o Ronildo Maia Leite, que é pai do Iuri (diretor da TV Globo Nordeste), e para mim quem tem um professor como aquele não precisa de faculdade. E só 10 anos depois é que surgiu o curso de comunicação eu já era presidente da Associação Brasileira de Cronistas Esportivos (Abrace). Muita gente que trabalhava comigo foi ser professor. Aí eu cheguei a conclusão que eu não ia aprender muito na faculdade e fui estudar direito na Universidade Católica.

E onde trabalhava antes do jornal?
Trabalhava com meu pai na empresa de vidro, não tinha nem carteira assinada. Na verdade, o padrasto que se tornou meu pai, porque foi ele quem me criou.

Você tem quantos irmãos?
Ao todo são 14. Tenho 39 sobrinhos. Quando se reúnem todos numa casinha que a gente tem em Porto de Galinhas é uma esculhambação (risos).

Como começou seu interesse por futebol?
Começou com a rivalidade de irmãos. Só eu torcia pelo Náutico, os outros todos pelo Sport. E aí era uma rivalidade. Meu pai também era Sport, me levava pro campo pra assistir ao jogo do Sport. Eu ficava lá querendo torcer pelo Náutico sem poder (risos). O fato de ter um time de botão que era do Náutico tinha muito a ver.

E sua passagem na publicidade?
Saí do Jornal do Commercio porque entrou num processo de falência. Quem me formou na publicidade foi o Queiroz (Severino), assim como Ronildo Maia Leite foi importante para eu me formar em jornalista, o Queiroz me formou como publicitário. Na Abaeté (agência) trabalhei de 1970 a 1973. Eu passei a me destacar sendo contato do Banorte, que na época era uma potência. Daí o Banorte falou com a Abaeté para me levar para lá. Aceitei o convite e fiz especialização em marketing bancário pela Fundação Getúlio Vargas, na Universidade de Michigan.

E na Globo começou na área de esportes?
Entrei na Globo em 1º de janeiro de 1976. Fui contratado pela Globo para ser apresentador do Globo Esporte que estava chegando na Rede Globo Nordeste. Aí Armando Nogueira que tinha me visto trabalhando nas pautas pelo show disse: contrata o Chico José porque esse aí tem experiência para trabalhar. Só que eu não tinha experiência nenhuma de televisão, nunca tinha trabalhado nem em rádio. Foi dramático meu primeiro dia na Globo (risos), porque quando me chamaram disseram: “você vai ter que vir aqui na quarta-feira de qualquer maneira. Estamos esperando você às 4 da tarde no Morro do Peludo”. Eu fui, acertei, passei a ganhar 50% a menos do que eu ganhava no Banorte, onde eu era gerente de marketing. Na época o banco pagava bem. Fui casado duas vezes, a primeira com Socorro, com quem tive duas filhas, e depois Beatriz (Castro), nós temos uma filha. A minha primeira mulher odiou essa história de ir pra Globo e ganhar metade do salário. Achava que jornalismo não dava futuro pra ninguém.

E o que o motivou a ir para Globo?
Eu queria voltar a ser jornalista. Eu estava no Banorte pelo salário, mas eu não era bancário, não conseguia me realizar com aquilo ali, então eu queria voltar a ser jornalista e na Globo era uma grande oportunidade. Bem eu acertei, ia ganhar menos, e aí perguntei: quando é que eu vou começar, me responderam: “hoje!”. Eu disse: hoje, às 5 da tarde, fazendo o quê? Disseram: “você vai narrar o jogo Santa Cruz e São Paulo”. Eu disse: mas este jogo é no Morumbi e eles responderam que eu gravaria em off-tube. Aí perguntei: o que é off-tube? E explicaram: “dentro de uma cabine e quando a luz acender lá no ar você sai narrando”. Aí eu disse: eu não sei fazer isso, não sou narrador, algo que nem curso de jornalismo ensina. É um dom, uma coisa nata. Aí disseram: “não, não, aprende aí”. E pedi: mas não posso treinar antes? Eles disseram que não. Me deixaram lá numa sala e lá pras 9h30 da noite chamaram: “cadê o cara que vai narrar o jogo?” Aí me levaram para a cabine recomendaram: “aqui estão as duas escalações. Você conhece os jogadores, né”. Eu conhecia bem. Por azar meu, choveu muito no Morumbi, os jogadores se sujaram, os dois times são tricolores, têm as mesmas cores, diferencia pouco as camisas, mas eu conhecia bem os jogadores. Aí fecharam a porta e disseram que quando acendesse a luz estaria no ar e no intervalo eu chamaria os comerciais. E como é que chama os comerciais? (risos) REsponderam: “agora vamos ao intervalo comercial”. Tá bom. Fiquei lá. Começou o jogo eu fiquei falando: bola com fulano, passe pra sicrano, o Santa Cruz todo na retranca, o São Paulo atacando. Daí a pouco chutaram uma bola na trave. O que que eu ia fazer se fosse gol?! Eu não sei gritar gol! (risos). Não sei nem cantar o hino do Galo da Madrugada, que acompanho desde o primeiro desfile, sou desentoado todo, como é que eu ia gritar gol? Graças a Deus o jogo foi zero a zero. Ainda teve pior: o mesmo cara que me botou na cabine disse: “vem pro estúdio, porque você vai chamar os gols dos outros estádios”. Aí eu entrei pela primeira vez no estúdio da Globo. Um calor desgraçado, não havia como hoje iluminação LED. Naquela época eram aqueles refletores em cima, desligava o ar, porque dava interferência no áudio. Sentei, comecei a suar. Aí perguntei: como é que chama os gols? Aí o rapaz disse: “você vai dizer que no Maracanã foi 1 a zero para o Fluminense, gol de Rivelino. Depois chama o do Beira Rio e o do Mineirão”. Aí fiquei na frente da câmera, tremendo, suado, daí a pouco entra o cara de novo e diz: “bota pó na cara dele que está brilhando muito.” Aí falei: na minha cara não vai botar pó nenhum! Naquela época o machismo nordestino imperava. Aí ele disse: “quero o pó de Maria Anunciata!”, que era a apresentadora da noite. Ele disse: “besteira, rapaz, todo mundo faz isso, Cid Moreira, Sérgio Chapelin, todos botam pó na cara”. Aí perguntei: como é que eu sei que está no ar? “Esta vermelha em cima da câmara vai acender e você estará no ar”. Chamei o gol do Maracanã, entrou o gol do Beira Rio! Aí eu disse: esse não é o gol do Maracanã, porque esse não é o Rivelino. Fui disfarçando. Agora vamos chamar o gol do Mineirão, entrou o do Maracanã. Não deu nada certo (risos). Eu estava tão nervoso que fui pra casa maquiado, naquela época chegar cheio de pó na cara era comprometedor. É cômico demais.

E no dia seguinte?
Voltei lá, para agradecer a Wilson Emanuel ( a pessoa que estava me orientando) e dizer que aquilo não era a minha praia, não dava para aquilo, não sabia fazer televisão. Ele tinha muito tempo de Globo. Era um carioca que veio para cá desde que a Globo foi fundada aqui. Ele me disse: “que nada, rapaz, quem sabe se você vai dar certo na televisão sou eu, que entendo de televisão. Você não entende nada!” Hoje além de ter curso de jornalismo, as pessoas treinam o que nós chamamos de piloto para entrar no ar. E não como fizeram comigo, você fica até com trauma (risos). Ele disse: “você vai ficar aí aprendendo”. Estou aprendendo até hoje. Cada reportagem é uma nova lição.

E você continuou como narrador de jogos?
Não. Acho que ainda fiz dois jogos, passei a ser comentarista e eles contrataram um narrador. Eu disse que não sabia gritar gol, isso é um dom natural.

A primeira copa que você participou foi a da Argentina?
Pela Globo foi a da Argentina em 78. Aí eu fui em 82 para a Espanha, em 86 para o México e em 94 eu ficava nos países adversários do Brasil. Mas eu já tinha ido para a de 66, no ano que eu entrei no jornal, em 70 também pelo jornal.

Como você consegue manter seu sotaque nordestino da tv?

Isso hoje acabou. Mas naquela época só havia oito repórteres autorizados a entrar no Jornal Nacional. Aí comecei a ter aula de dicção. Mas, primeiro eu entrei à força. Teve um incêndio na rua Corredor do Bispo, onde um posto de gasolina pegou fogo com vários carros dentro e um caminhão tanque descarregando. Saí para um treino do Náutico e vi a fumaça do alto do Morro do Peludo. Falei: “aquilo deve ser um grande incêndio. Em vez de ir para o treino vamos embora para lá.” Quando cheguei o fogo estava cobrindo o caminhão e vários carros dentro. Aí puxei o cinegrafista pelo cabo. Chegamos primeiro que os bombeiros e fiquei narrando – tenho o hábito de narrar as matérias que faço, tudo que falo é de improviso. Fui narrando, dava as costas para a câmera, estava com uma camisa quadriculada, aberta no peito, cabelo grande, tudo o que a Globo não permitia. Nas redações havia um quadro com as posições do repórter, vestido de paletó e gravata. Tinha que ser plano americano aberto e plano americano fechado. Só podia entrar daquela maneira. Mas eu também não tinha feito a reportagem para o Jornal Nacional, é que a repercussão do incêndio foi grande queimou a fachada dos prédios ao lado, queimou seis carros, teve a explosão do carro tanque. Um major do Corpo de Bombeiros cortou a mangueira e eu imediatamente perguntei: major isso vai explodir. Aí ele disse: “vamos sair, vamos sair!”. A gente saiu e logo em seguida explodiu. Foi uma coisa que repercutiu muito. Mandaram a matéria para o Rio, que entrou no Jornal Nacional do jeito que entrou no jornal da noite daqui. Em seguida a diretora do jornalismo Alice Maria ligou e perguntou: “quem é esse repórter débil mental que fez essa matéria?” Responderam: “é o repórter de esportes”. Ela ordenou: “manda ele (sic) para o Rio amanhã para comprarem roupa para ele, que essa camisa quadriculada é horrível (risos) e para cortar o cabelo e ter aula de fonoaudiologia.

Como foram as aulas?
Tive aula com Glorinha Beuttenmüller, uma sumidade. Ela era quem treinava os atores, os apresentadores. Havia um exercício que eu não me esqueço que ela dizia diga “Ôlinda” e eu falava “Ólinda”. Aí ela disse para Armando Nogueira que eu não iria mudar a minha maneira de falar. Ele me perguntou: “por que você não está obedecendo a fonoaudióloga?”. Eu respondi: porque ela quer que eu fale como um carioca e eu sou nordestino. E o Jornal Nacional quer um nordestino falando com um sotaque carioca. Se é um jornal nacional tem que obedecer o sotaque do Nordeste e das outras regiões.” Aí ele parou e disse: “você tem razão”. Aí chamou o editor chefe e disse: “libera os repórteres Rio Grande do Sul e Minas Gerais para irem ao ar”. Por que, antes, o repórter local fazia a matéria e quando ao ia para o ar, tirava o repórter e colocava o narrador, porque eles achavam feio os sotaques. Era uma emissora eminentemente carioca, depois é que foi mudando. E na Copa de 78 tevea história do “Rôssário” e “Rusário” ( na verdade é Rosário, cidade argentina). Eu não falava “Rôssário”, eu saí do Nordeste pra falar “Rôssário”? Aí veio um recado den Armando Nogueira para que se eu não falasse direito ou eles me mandavam embora. Como a pressão estava grande eu já havia visto horário de voo para voltar para o Brasil. Aí gravei um recado grosseiro para ele, dizendo que meu jeito de falar era aquele, se quisesse era assim, se não quisesse aí falei um palavrão. Aí, Armando Nogueira chegou na ilha de edição e viu várias pessoas rindo e perguntou o que estava acontecendo. Quando ele ouviu o recado falou: “deixa ele lá falando desse jeito horrível dele, pelo menos todo dia tem matéria dele no Jornal Nacional”. Isso virou folclore. Galvão Bueno, quando me encontra, fala: “Rusário, Copa 78” (risos). Hoje no Ceará só entram repórteres do Ceará, aqui só entram repórter daqui, etc. A Globo chegou a conclusão que era uma burrice mandar repórter do Rio e de São Paulo cobrir fatos de outros Estados. Durante 10 anos só havia eu de repórter autorizado para entrar no Jornal Nacional no Nordeste e Amazônia. Teve um dia que fiz três debates políticos aqui: pela manhã vieram os candidatos ao governo do Rio Grande do Norte, à tarde vieram os da Paraíba e à noite José Múcio e Arraes ao vivo.

Você também foi correspondente?
Quando terminou a Copa de 78 foi uma confraternização imensa da Globo, porque deu um show de cobertura, era a primeira grande cobertura da emissora em copa do mundo. Uma churrascaria foi fechada só para o grupo. Aí disseram: quem vai falar pelo grupo é o Chico. Eu falei, aí Armando me abraçou e disse que fiz um trabalho extraordinário. Porque eu pulei muro de estádio para mostrar treino secreto, fiz miséria nessa copa. Aí disse: mas eu ganho muito pouco para receber elogio seu. Ele perguntou quanto eu ganhava, disse 7.500 cruzeiros. Ele determinou que a partir daquele momento iria ganhar 15 mil e que eu preparasse minha transferência para o Rio de Janeiro. Eu falei: de jeito nenhum! Não saio da minha terra pra nada! Em 1982, quando Renato Machado voltou da Europa, o chefe do escritório de Londres era Roberto Feith, que veio para o Brasil e disse a Alice maria que queria um repórter “pé de boi”, um cara que vai e faz. Ela disse: “tenho um que se enquadra nesse perfil, mas ele não vai querer ir”. Aí Bob disse: “como ele não vai querer ir pra Londres? Quem é?” Ela disse o Chico José. Ele disse “eu quero exatamente o Chico José”. Ela propôs que ele fosse ao Recife falar comigo. Ele esteve no meu apartamento, fez a cabeça da Mariane, minha filha mais velha, que é jornalista, da minha ex-mulher para ir para lá. Mas eu disse que não iria de jeito nenhum. Aí ele propôs que eu tirasse as férias do Silio Boccanera. Aí eu falei: tirar férias sem compromisso. Fui duas vezes tirar férias de 40 dias. Saia pegava o metrô de noite correndo para ir para casa para não congelar. Falava com o vizinho, ele nem respondia, porque soube que eles não gostavam de latinos. Aí eu disse que não ficava. Nunca aceitei sair daqui. Essa história de ser correspondente é que eu já fui nos cinco continentes, já mergulhei nos setes mares, já fui ao Polo Norte e ao Polo Sul. Mas eu vou e volto sempre.

Mas você foi correspondente da Guerra das Malvinas?
Fui cobrir a guerra. Fui primeiro para a Argentina, para Comodoro Rivadavia (a cidade que tinha contato com a guerra), quando todos os jornalistas foram expulsos da cidade, inclusive o Hermano Henning que era o repórter da Globo. Eu entrei lá só para fazer áudio tape ou seja, às vezes levava o telefone para dentro do guarda-roupa para enviar o áudio, porque o hotel tinha sido todo ocupado pelos militares que estavam passando pelas Malvinas. Lá era um dos poucos hotéis da cidade, era um hotel grande que ficou cheio de militares. Se alguém me visse falando ali, eu seria preso. Como fui preso duas vezes e depois expulso. No dia seguinte, a Globo me mandou para o Chile, aí fiquei mais 20 dias lá. Isso foi em 82. Aí o general Menéndez se entregou e estava acabada a guerra. Nós voltamos e fomos direto para a Copa da Espanha. Ninguém foi para o campo de guerra, foi uma guerra que o Brasil, a Inglaterra e a Argentina, todos perderam. Você não tem uma fotografia da Guerra das Malvinas, porque só ia para lá quem eles autorizassem. E nós ainda bancamos o kamikaze. Alugamos um avião, o piloto fazia a ponte aérea de Punta Arena, no Chile, para as Malvinas. Ele era capitão da Força Aérea Chilena. Esse cara disse “eu desço o avião, solto vocês e depois vou buscar, se me pagarem, parece que era US$ 20 mil”. A Globo e outra emissora toparam pagar. Na hora que o avião estava sobrevoando o Atlântico Sul um avião argentino veio em cima identificou e mandou voltar para ushuaia. Já estava escurecendo, ele desceu e atravessou o Canal de Beagle e pousou no lado chileno, senão estaria preso e teria perdido a patente de capitão.

E as reportagens sobre a natureza como surgiram?

Eu fazia o factual e há 25 anos Beatriz (Castro) veio aqui cobrir o Carnaval, a gente começou a namorar e ela conseguiu a transferência para cá. Mas aí tinha aquela história só ia para o ar no Jornal Nacional a matéria feita por mim. Ela era do Bom dia, Brasil, em Brasília, e não entrava muito no Jornal Nacional, só esporadicamente, aos sábados. Aí resolvi me afastar pra ela ocupar o meu lugar. Comecei a fazer Globo Repórter. Pedi para fazer um programa de natureza em Fernando de Noronha, mas a direção do programa não queria de maneira nenhuma porque não era a “cara” do Globo Repórter. Aí pedi pra fazer um, se não desse certo, seria uma série de matérias para o Fantástico. Eu consegui convencê-los, fiz a matéria e ficou belíssima. Deu 30% a mais da audiência normal do programa. Aí eles falaram faz outro, fiz Atol das Rocas, outro, Abrolhos, faz outro, os Sertões. Aí vi que estava dando certo principalmente quando tinha mergulho. Comecei a fazer programas sobre o Mar Vermelho, barreira de corais da Austrália, Micronésia, Caribe, Indonésia. Andei o mundo todo mergulhando. Uni o útil ao agradável. Eu adoro mergulhar.

Você sempre mergulhou?
Sempre. Quando eu vim para Globo eu já mergulhava. Mergulhava em Boa Viagem mesmo, fazia caça submarina. As duas primeiras vezes que fui a Noronha foi para fazer caça submarina. Era o Campeonato Norte Nordeste de Caça Submarina. Só ia se a Aeronáutica autorizasse e levasse porque não tinha voo para lá. Ia num avião Búfalo.

Fale um pouco do livro que está escrevendo.
Estou comemorando 40 anos de Globo, contando histórias como essa que estou contando para vocês. A nova geração não conhece vários trabalhos que fiz, de jornalismo investigativo quando não havia celular, GPS, câmaras nos lugares para mostrar os crimes, quando não tinha fonte da polícia, que não dava informação. Eu descobri o Escândalo da Mandioca, acabei com o Sindicato da Morte na Paraíba. Eu comecei fazendo esporte, depois jornalismo investigativo até entrar para natureza. Tenho 93 Globo Repórteres, quem tem mais depois de mim tem 41. O 93º programa vou editar depois do Carnaval vai ser sobre o Jalapão, no Cerrado. Só em Fernando de Noronha fiz 4 Globo Repórteres, no Pantanal, 5, um deles é recorde de audiência até hoje, 45 pontos, a média de audiência hoje são 20 pontos.

Qual foi a matéria mais difícil que você já fez?
Fisicamente o pior momento que passei foi no Grand Canyon, onde desci com o cinegrafista Eduardo Rique. Só eu e ele. Você sai dando voltas pelo paredão e isso representa em torno de 13,5km, Quando nós chegamos lá embaixo no Rio Colorado vi que havia as placas – que eu não tinha observado antes lá em cima – alertando que não se podia ficar lá à noite porque a temperatura baixava a zero grau. Tinha que voltar. Isso era 14 h. Imagina subir 13km! Escureceu e eu com a câmera nas costas – porque entreguei a mochila menor para Eduardo – e disse vá embora. Foi a única vez que eu pensei que não ia resistir, achei que ia morrer.

Alguma outra?
Também fiquei 42 dias dentro de uma aldeia indígena tomando banho, escovando os dentes e fazendo a barba no rio, as necessidades dentro do mato, vivendo como índio. Foi difícil. É compensador pela matéria que você está fazendo. Era uma coisa inédita. Estou contando no livro o que não sai nas reportagens, os bastidores. A história dessa tribo Enawenê Nawê teve um fato impressionante porque no dia que chegamos lá a produtora, que é índia, a Maria Luiza, disse que não teríamos condições de trabalhar nos próximos dias porque a filha do cacique estava em coma na maloca. Um um galho grande de árvore caiu na cabeça dela. Eram 16 malocas de 70 m onde vivem 640 índios todos. Eles estavam fazendo pajelança. Pedi para ligar a câmera aí e disse: isso que vocês estão ouvindo isso é uma pajelança, uma lamúria, um canto. O meu intérprete era o filho do cacique um dos poucos que falava português. Pedi a ele autorização para entrar na maloca, mostrei as mulheres no pilão, outras num tacho imenso fazendo mingau, os peixes assando, fumaça por todo lado. Tudo aquilo era para os espíritos, porque eles ficam sete meses no ano dando comida para Iakariti que é o espírito do mau. Dois anos antes, o cacique morreu picado por uma surucucu, qualquer pessoa que for picada por uma surucucu lá vai morrer, porque não tem tempo de chegar num local que tenha soro. Mas eles acham que não foi a serpente que matou o cacique, foi o Iakariti incorporado na serpente. O galho daquela árvore foi o Iakariti que bateu na menina. Quando o cacique colocou a comida no meio da aldeia para o espírito, ele viu a gente filmando, e nos disse algo para muito emocionado. Perguntei ao interprete o que ele estava dizendo e falou: “ele está dizendo que ele é o culpado por a filha dele estar assim, por ter dado pouco peixe para o Iakarati. Mas ele ia pescar mais e dar mais comida para o Iakariti”. Mas entrevistamos um biólogo que disse que o peixe não estava chegando porque foi feita uma hidrelétrica acima da aldeia. Aí eu disse: não vim interferir mas chame seu pai aqui e traduza palavra por palavra do que eu vou dizer. Sua filha vai morrer, ela precisa ir para um hospital, precisa de tratamento médico, pajelança não vai resolver o problema de sua filha com sangue da cabeça, desacordada. Ele não disse nada mas encheu os olhos de lágrimas. Eu perguntei: você quer que sua filha morra? Aí ele entrou na maloca e dez minutos depois o filho dele veio e disse “menina vai sair. Cacique falou com os pajés e eles deixaram menina ir embora”. Mostramos a imagem com a menina, a mãe e o irmãos no barco da Funai. No outro dia, tipo 5h30 da manhã chega no nosso acampamento de palha, a 300 m da aldeia na beira do rio, o filho do cacique vai lá na minha rede e diz que o cacique queria falar comigo na aldeia. Pela maneira dele falar sabia que estava acontecendo alguma desgraça. Fui no rio, fiz a barba, escovei os dentes e fui falar com o cacique. Ele disse: “médico não cuida de menina. Menina não está sendo atendida. Médico não gosta de índio”. Quando cheguei lá havia mais de 30 índios ao redor do cacique, todos de cara feia para mim. Aí o cacique botou a mão na minha cara e disse que confiou em mim, mandou a filha e que ela estava morrendo lá, e era para ela morrer aqui e não lá. Aí eu senti a m* que eu tinha feito. Mas eu não me arrependi. Aí perguntei: como é que vocês souberam disso? Eles responderam: “na cabana tem rádio de Funai. Aí eu disse, vamos lá no rádio da Funai que eu vou tentar resolver. O rádio fala para a Funai de Juína (MT) e a Funai transfere para qualquer celular. Acordei o produtor da Globo em São Paulo, disse Rafa, acha o celular do governador de Mato Grosso ou do secretário de Saúde. Depois de 10 minutos eu liguei, ele disse:”falei com o secretário de Saúde ele disse que vai mandar buscar a menina”. Eu disse que isso não resolveria e pedi o telefone do secretário. Liguei às 7h da manhã e pergunti como ele ia buscar a menina. Ele disse pelo Samu. Eu disse secretário são mais de 600 km de Cuiabá até Brasnorte, onde ela está, para ir e para voltar. A menina vai morrer e o senhor vai ser o responsável. Ele disse: “e o que o senhor quer que eu faça?” Eu disse que mande um avião para buscar a menina já com um neurologista com medicamento a bordo. Aí ele disse: “como é que eu vou achar um avião, num dia de domingo com um neurologista?” Bom, eu disse: quem é o secretário de saúde do Estado, o senhor ou sou eu? Ele disse que não estava ali para resolver esses problemas, eu disse que estava sim. Aí eu disse: vou resumir a história, meu nome é Francisco José, sou repórter da TV Globo, estou gravando o Globo Repórter e eu já tenho o início da reportagem que é mostrando a menina saindo para ir ao seu hospital. Existem dois finais para o senhor escolher: um ela voltando, viva, bem, curada e o outro voltando o corpo dela para enterrarem e eu dizendo que foi o senhor quem matou. Escolha. Aí ele disse: vou mandar buscar agora mesmo. Mandou buscar. O final da matéria somo eu, com índios, a equipe, todos tomando banho e a menina pulando na água. Eles são muito alegres.

Como você encara o jornalismo hoje?
Tecnicamente o jornalismo evoluiu muito porque quando comecei trabalhava com película em preto e branco. Não tinha tv em cores aqui. Depois fazia com filme colorido quando era matéria para o Jornal Nacional. Trabalhava com câmeras uma acoplada a outra, hoje temos um sistema HD com câmeras moderníssimas, temos um computador na nossa frente, você tem um Google para pesquisar, tem celular, as redes sociais. Então o jornalismo tecnicamente evolui demais. O que está acontecendo hoje em termos de mercado é que tem muito jornalista sendo formado para uma profissão que nem é reconhecida e há uma disputa muito grande e os mercados são muito defasados, pagam muito mal. Termina sendo uma profissão muito injusta. Há uma concorrência muito grande, hoje você tem uma ramificação bem maior, você não precisa ser só repórter de jornal, de revista ou tv, existem as assessorias de imprensa, minha filha tem uma empresa de comunicação. Mas a tendência é haver cada vez mais concorrência, os salários que existem hoje não vão existir mais porque as empresas não vão permitir mais que os salários se multipliquem como aconteceu de 15 anos para cá, não só na Globo como nas outras. Lembro de repórter sair da Globo para trabalhar em outra emissora ganhando R$ 150 mil por mês.

Isso vai comprometer a qualidade do jornalismo?
Não porque a qualidade tende a melhorar, com profissionais formados. Temos dez estagiários, sempre pode escolher os melhores. A qualidade tende a se manter e até melhorar, as inovações, a maneira de apresentar os telejornais, as edições que estão cada vez mais caprichadas. Isso tudo tende a melhorar o telejornalismo que já tem uma concorrência grande das redes sociais. O jornalismo impresso é o maior prejudicado porque você lê tudo antes, no rádio, na televisão, na internet.

Você acredita que a internet vai ocupar o espaço da televisão de ser o principal meio no Brasil?
Não acredito porque todas as emissoras já têm internet. Todas têm os seus portais e quem tem televisão em casa vai sempre ter a oportunidade de ver. O cara não vai deixar de sair , de fazer o seu programa para ver televisão, mas há o fato de ser um hábito dos brasileiros, da imagem que é fortíssima. As redes sociais nem sempre são confiáveis porque qualquer notícia sai como a pessoa que postou quer. Ela pensa daquele jeito, bota a opinião dela. Enquanto que a televisão e os órgãos de imprensa em geral tem a preocupação de checar, de dar oportunidade de defesa para quem está sendo acusado.

Além do livro, há outro plano futuro?
Tenho mais 2,5 anos de contrato com a Globo, eu sou pessoa jurídica, não sei o que vai acontecer depois desse tempo, mas estou me preparando para não fazer mais nada. Hoje eu mergulho melhor do que mergulhava antes. Numa matéria que vai ao ar faço um rapel para mostrar uma floresta amazônica no meio do Cerrado, aonde eu desço 75 m. Depois andei mais 7,5km para subir. Num dia. Então sou um velho afoito, enquanto eu estiver fazendo isso certamente a Globo vai querer que eu faça e eu vou querer fazer também.

Você faz alguma atividade física para poder fazer essas matérias?
Não. O pior é isso. Tenho um médico na família, marido da minha irmã, e faço exames periódicos com ele. Agora mesmo eu não tenho nada, mas ele exige que eu faça. Aí ele diz: faz uma atividade física. Bia tem uma esteira , a gente anda as vezes no calçadão, mas é só e não é sempre. Se estiver passando um jogo do Barcelona, Real Madri, na tv não tem quem faça eu sair. Mas eu preciso fazer porque eu já me quebrei muito nessas viagens. Numa montanha coberta de gelo eu cai numa fenda e rompeu os ligamentos que dão sustentação ao braço. Mas eu não sabia o que era, pensei que havia deslocado o braço. Pedi ao cinegrafista para puxar o braço e piorou. Você sabe que com um braço só, sentindo dores, tomando medicamento, ainda fiquei 14 dias na montanha gravando? Quando cheguei aqui foram 3,5 horas de cirurgia. Hoje o braço está melhor que antes (risos).

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