“Tudo aquilo que faz a alma pernambucana passa pela contribuição dos indígenas”

Muitos pernambucanos, que assistem estarrecidos as imagens da tragédia dos ianomâmis na Amazônia, desconhecem que Pernambuco possui uma das maiores populações indígenas do País. Elas têm sido essenciais para a formação do Estado e sempre estiveram presentes nos principais momentos históricos, como na invasão holandesa ou na Revolução de 1817. Com o intuito de contribuir para dissipar esse desconhecimento, os antropólogos Estêvão Martins Palitot e Lara Erendira de Andrade idealizaram o projeto Atlas do Pernambuco Indígena https://www.atlasindigena.org/, portal que reúne cartografias e textos com informações sobre as etnias indígenas pernambucanas e que teve o incentivo do Funcultura, Fundarpe, Secult, Governo de Pernambuco.

Nesta conversa com Cláudia Santos, Estêvão Palitot, que é professor do Departamento de Ciências Sociais do Centro de Ciências Aplicadas e Educação da Universidade Federal da Paraíba, fala do projeto, da situação dos povos indígenas locais, da luta pela demarcação das terras no Estado e do processo de invisibilidade que foram vítimas. “Sabemos muito bem falar das contribuições dos portugueses, dos holandeses, dos franceses, dos judeus, mas quando chegamos nas contribuições dos povos negros e indígenas, isso é silenciado, demonizado, criminalizado”, analisa o antropólogo, que se diz esperançoso com a criação do Ministério dos Povos Indígenas.

O que é o projeto Atlas do Pernambuco Indígena e quais seus objetivos?

O projeto foi pensado por mim e por Lara Erendira de Andrade. Somos antropólogos, trabalhamos com povos indígenas e temos duas paixões: a história e a cartografia. Os trabalhos dos historiadores são fantásticos, o dos antropólogos também, mas terminam sendo lidos por nós, por quem está na academia. A ideia do projeto é tornar esse conhecimento mais acessível ao grande público.

O Atlas é um site no formato de blog com dois tipos de postagem: artigos, que têm um caráter mais acadêmico, com uma densidade maior, e as cartografias, com textos menores em que procuramos explicar os mapas, que são muito interativos. Cada pontinho do mapa pode ser clicado e aparece uma informação, com referências a outros trabalhos para aprofundar os conhecimentos.

Agora, pensamos nos próximos passos, inclusive convidando colegas que têm produções relevantes para trazer para o Atlas. Pretendemos fazer um trabalho que seja vivo, sendo alimentado e podendo ser utilizados por professores, estudantes, por outros pesquisadores, pelos próprios povos indígenas nas escolas das aldeias como ferramenta de conhecimento, de luta, de valorização, de afirmação, de direitos.

Por que vocês escolheram o modelo de cartografia?

Os mapas também são um discurso e ferramentas de poder. Quem sempre desenhou os mapas foram os poderosos e a finalidade era dizer: “o meu poder vai até aqui”, seja o poder do Estado, da empresa, do rei, de quem quer que seja. Nessa representação da realidade apenas alguns aspectos são enfatizados. Por exemplo, os mapas históricos sobre Pernambuco, sobre o Nordeste, sobre o Brasil, não revelavam a presença dos povos indígenas. Mesmo hoje, quando você pega os mapas rodoviários, eles vão mostrar na Amazônia as terras indígenas, mas no mapa de Pernambuco, não mostram.

Fazer um mapa é fazer uma escolha entre o que vai ser visível e o que vai ser invisibilizado. A nossa contribuição é produzir ou reproduzir mapas nos quais os indígenas estejam presentes, queremos ser uma espécie de amplificador das vozes indígenas. Nunca vamos querer tomar o lugar das vozes indígenas. Eles lutam continuamente para não serem apagados, riscados do mapa, literalmente.

Por falar em invisibilidade, Pernambuco conta com a quarta população indígena do País, um dado que pouca gente conhece. Como está a situação dessas etnias?

Pernambuco tem uma das maiores populações indígenas do Brasil, mas que é invisibilizada, que vive principalmente no Agreste e no Sertão do Estado. Os xucurus têm em torno de 10 mil pessoas, os atikuns em torno de 8 mil, os fulniôs, trukás, pankararus, em torno de 5 mil. Se contabilizarmos os que migraram, esse número é muito maior. Temos uma estimativa que existam uns 2 mil pankararus em São Paulo, os atikuns têm aldeias na Amazônia, porque vivem numa região muito seca e muitos grupos familiares migraram para o Rio São Francisco, para os serrados da Bahia, para o Tocantins e para o Pará.

Há também os processos de luta por recuperação territorial. O caso dos xucurus, dos trukás e dos pankararus são os mais conflituosos, com uma série de assassinatos. No caso dos pankararus, há uma série de ameaças de morte e atentados. Recentemente um posto de saúde indígena foi destruído em razão de conflitos fundiários que ainda não estão resolvidos, muitas vezes por omissão ou lentidão do Estado.

Nos últimos 70 anos, houve um processo de lenta recuperação dos territórios indígenas porque eles nunca se calaram, nunca deixaram de reivindicar. Quando, desde o Século 19, se diz que “os índios estão misturados, miscigenados” a frase seguinte era: “logo, não precisam de terras, podem virar trabalhadores nas fazendas, nos engenhos ou nas periferias urbanas. Eles podem ser pobres, eles já são brasileiros”. E os indígenas dizem: “Alto lá! A gente é até brasileiro, mas somos os primeiros brasileiros, temos direito a um pedaço de terra”.

Há uma luta histórica e o Atlas procura ser um registro dela para que reverbere as frases que os indígenas dizem: “nunca mais um Brasil sem nós. Sempre estivemos aqui”. Procuramos levar esses subsídios que registramos nas pesquisas históricas e antropológicas para um conhecimento público. O que tem sido feito com os ianomâmis, já foi feito em Pernambuco e em todo o Brasil: guerras, escravizações.

Há um relato de um massacre na região de Juazeiro e Petrolina, o Massacre do Rio Salitre, em que um padre acompanhou uma expedição de guerra contra um grupo de indígenas. Mais de 500 foram capturados, desarmados e dois dias depois todos os homens foram degolados e as mulheres e crianças levadas como escravas. Em Pernambuco essa violência, nas últimas décadas, foi marcada por assassinatos, como o de Xicão Xucuru e de várias lideranças trukás. O preço para reconquistar parte do território indígena foi o sangue das lideranças, a criminalização, a difamação. A sociedade pernambucana precisa ter consciência disso para entender o lugar dos povos indígenas e o que foi feito e é feito com essas populações até hoje.

Qual o principal desafio para a demarcação das terras indígenas?

As demarcações seguem um rito processual que está definido pela Constituição e por um decreto de 1996, que prevê que sejam feitos estudos técnicos das terras indígenas coordenados por antropólogos e ambientalistas. Eles identificam os limites do território de ocupação tradicional dos povos indígenas e os necessários para sua reprodução física e cultural. Ou seja, uma terra indígena é demarcada pensando no passado, no presente e no futuro desses povos. A lei prevê que a base territorial que será demarcada pelo Governo Federal vai garantir a continuidade da existência desses povos.

Em Pernambuco, historicamente, esses territórios foram usurpados e isso sempre foi denunciado. Encontramos notícias em jornais, por exemplo, no Diário de Pernambuco, no começo do Século 20, denunciando que as terras dos indígenas estavam sendo tomadas em Tacaratu, em Águas Belas, nas Ilhas do Rio São Francisco. São denúncias feitas por intelectuais, como Carlos Estevam de Oliveira e Mário Melo.

Somente com a Constituição de 1988 começa a demarcação das terras indígenas. Algumas terras dos xucurus, dos trukás, dos pankararus, dos atikuns foram demarcadas, mas outras ainda estão nos processos iniciais de demarcação. A terra fulniô é muito curiosa porque nunca foi demarcada. É uma reserva indígena, que é outra figura jurídica. Mas os fulniôs ainda hoje demandam demarcação do seu território.

Como que você vê a criação do Ministério dos Povos Indígenas?

Criar o ministério é reconhecer a importância dos povos indígenas para o Brasil. Muitos podem dizer que os indígenas são numericamente pouco expressivos no País, porém, simbólica e politicamente, são muito importantes. A geração que está aí assumindo o ministério, a Funai, a Secretaria de Saúde Indígena, tem décadas de militância, de formação política, acadêmica, intelectual. Esses são os indígenas que foram estudar e que continuaram na luta. Temos muita esperança, sabemos que os desafios são imensos. Presenciamos a tragédia humanitária, com mais uma situação de genocídio não só dos ianomâmis, mas de outras situações urgentes que temos no Brasil.

Leia a entrevista completa na edição 203: assine.algomais.com

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