Educação que transforma: “Cara, a favela também pode”

Nascido e criado na comunidade de Caranguejo Tabaiares, Enderson da Costa, 27 anos, viu 75% dos amigos de infância morrerem. A violência e as drogas que tragaram uma geração de jovens do local onde ele morava não chegou a sua casa. O nascimento de uma biblioteca comunitária na vizinhança abriu um caminho de oportunidades para ele e para outras crianças que frequentavam o espaço. O jovem não apenas sobreviveu em meio a tensão, comum de todas as periferias das grandes capitais do Brasil, mas aprendeu a sonhar. A expectativa de dar novos passos na vida profissional o levaram para o ensino superior e no final deste ano ele terá o diploma de Bacharel em Direito.

O pai de Enderson é pedreiro e sua mãe é empregada doméstica. O incentivo para investir na vida profissional veio pelas mãos dos voluntários da biblioteca. “Sempre morei na favela do Caranguejo Tabaiares. Meus pais e irmãos sempre foram da favela. A princípio é oferecido para nós pobres e negros, moradores de uma comunidade carente, apenas uma opção de vida. Somos quase que pré-determinados apenas aos trabalhos braçais. Isso se conseguirmos chegar à honestidade aos 21 anos. E a biblioteca mostrou que há vida após os muros da favela. Geralmente o afavelado vive aquele mundo pelo resto da sua vida e é isso que ele vai passar para os seus descendentes. Com a graça de Deus, minha irmã descobriu a biblioteca. Ela também estudou técnico e graduação em enfermagem e hoje é gerente de uma empresa. O livro foi a oportunidade que me foi dada para conhecer novos mundos e países, várias coisas apenas com a leitura”, relata o jovem.

Além de frequentador assíduo da Biblioteca Comunitária, ele se tornou monitor. Ainda hoje presta serviço voluntário sempre que pode na instituição. Após terminar o  ensino médio, Enderson conseguiu entrar numa faculdade particular do Recife com o financiamento do Fies. Está no 10º período. Se mudou, casou e hoje tem dois filhos. Ainda não trabalha na área jurídica, mas está empregado num serviço administrativo e pretende até o próximo ano ser aprovado no exame da Ordem dos Advogados do Brasil.

Pertinho de terminar o curso, ele lembra que não foi fácil avançar período após período na graduação. “Sou o único negro da minha sala. Começou com 60 e poucos alunos. Hoje só somos 14 pessoas. Sigo sendo o único negro, pobre e da favela. Quando cheguei na faculdade, mesmo com o professor explicando os assuntos com palavras mais simples eu tinha dificuldade de compreender, porque meu vocabulário era muito pequeno. Tudo foi muito mais difícil no começo”, relata o jovem.

As lembranças dos primeiros passos no ensino superior o levaram a um debate na entrevista sobre a meritocracia. Que ele explicou a razão de ser contrário. “Algumas pessoas defendem a meritocracia. Mas como você pode dividir o nada para dois. É isso o que pobre tem. Nunca nos foi oferecido nada diferente. E querem nos exigir o que? Que meritocracia é essa? Começamos com nada e os outros já estão lá na frente. Todos os que estudavam comigo já tinham estabilidade financeira, eram concursados, gerentes de bancos, moravam em prédios. Muitos com pais advogados. E eu ainda hoje não me inseri no mercado. É difícil estagiar. Principalmente quando se tem filhos, esposa, casa alugada. Isso é um trauma do passado que todos os dias deve ser superado, superado e superado”.

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“Paulo Freire falou uma coisa que sempre me marcou: Só a Educação Liberta”, recitou o jovem que tem outro sonho. Ele pretende publicar em breve um livro com as histórias que ele testemunhou na sua comunidade. “A literatura me libertou. Hoje eu escrevo bastante. Quero lançar meu livro, o Contos de Palalas. Existe o conto de fábulas. Palalas são histórias que vivi, vi e ouvi dentro da favela e que conto até com certa sarcasticidade”.

Na entrevista ele relatou a história de um garoto que aos 5 anos disse que sonhava em ser matador. Outra era de um grupo de quatro irmãos que foram abandonados pela família quando eram ainda adolescentes e passaram a viver sozinhos na favela. “Um já foi preso e outro assassinado”, relata.

Enderson não foi o único a mudar de vida. Outros frequentadores do espaço também conseguiram seguir para o ensino superior, seja público ou privado, por meio de bolsas e incentivos públicos. E hoje escrevem uma nova história em suas famílias.

O doutor em Lingüística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas e professor da UFPE, Clécio Bunzen, defende que a leitura seja tratada como um direito para todos. “Pernambuco não tem investido muito em bibliotecas comunitárias. Posso dizer que é um movimento que o povo faz. As pessoas alugam uma casa, fazem vaquinha para os móveis, recolhem doações para o acervo. A comunidade sente a necessidade de ler. A leitura tem o papel de humanizar as pessoas, oferece o contato com um mundo e perspectivas de vida diferenciados. Há um impacto cognitivo e psicológico enorme. Por isso lutamos, pois a leitura precisa ser um direito para todos”, defende o professor.

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*Por Rafael Dantas, repórter da Algomais (rafael@algomais.com)

 

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